Brasil inspira filmes exibidos na Mostra de São Paulo, que será encerrada na quarta

Na tela é retratado o país do abismo social, da falta d'água e de velozes revoluções comportamentais

30/10/2015 12:30

Divulgação
Cena do filme 'Boi Neon', do pernambucano Gabriel Mascaro (foto: Divulgação)
São Paulo – A cada novo ano, a produção cinematográfica brasileira vem batendo a casa dos três dígitos. Em 2014, chegaram às salas de exibição 114 filmes nacionais, segundo levantamento da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Dividindo com o Festival do Rio o posto de evento mais importante e diverso do país no setor, a 39ª Mostra Internacional de São Paulo busca antecipar o que poderá ser visto no circuito.

Sessenta e duas produções nacionais, inéditas em São Paulo, serão exibidas até quarta-feira. Na seleção destacada pelo Estado de Minas, exibida ao longo desta semana, estão filmes que, de maneira absolutamente diversa, procuram pensar o Brasil.

Seca e Futuro junho, documentários de Maria Augusta Ramos, tocam em temas caros a este complicado 2015: a falta de água e a dificuldade econômica. O abismo social nos grandes centros é tema de Campo Grande, ficção de Sandra Kogut.

Boi neon, de Gabriel Mascaro, aborda, de forma absolutamente original, uma tradição nordestina, hoje fortaleza do agronegócio: a vaquejada. Único filme a olhar para o passado, Califórnia, de Marina Person, busca apresentar para as novas gerações como o adolescente vivia no Brasil dos anos 1980, em meio ao movimento pelas Diretas Já e à chegada da Aids.

 

BOI NEON

 

Menção honrosa no Festival de Toronto, um prêmio do júri no Festival de Veneza e a vocação para levar outros troféus mundo afora, Boi neon, do pernambucano Gabriel Mascaro, é a sensação desta temporada. Depois de ganhar quatro prêmios no Festival do Rio – filme, roteiro, fotografia e atriz coadjuvante –, chegou a São Paulo cercado de expectativas, que se justificaram depois da primeira sessão, com sala lotada.

A intenção do diretor é pensar um “Nordeste transfigurado”. Para tal, usou como cenário a tradicional vaquejada, “que hoje tomou escala do espetáculo”. Ainda sem data de estreia (possivelmente, no primeiro trimestre de 2016), Boi neon será distribuído pela Imovision.
Não há propriamente uma história, mas a reunião de personagens investigados com uma lente muito próxima. Iremar (Juliano Cazarré) é o vaqueiro de curral que trabalha no interior do Nordeste (as locações foram em Pernambuco e na Paraíba), enquanto sonha deixar tudo para começar nova carreira criando roupas femininas. Nas poucas horas vagas, ele se dedica com afinco à costura.

Iremar viaja pelo interior com Galega (Maeve Jinkings), mulher forte e motorista de caminhão, que transporta bois e tem a caixa de ferramentas como seu maior bem; Cacá (Alyne Santana), a filha pré-adolescente da caminhoneira; e os vaqueiros Zé (Carlos Pessoa) e Mário (Josinaldo Alves). O grupo vive, literalmente, em meio a excrementos da boiada.

Mascaro frequentou vaquejadas durante dois anos. “Não conseguia ficar mais do que dois dias. Voltava para casa por causa do excesso de machismo e violência”, conta. A situação mudou quando ele conheceu o vaqueiro que inspirou o personagem Iremar. Tal como na ficção, ele se dividia entre o gado e a moda.

A situação do grupo muda quando Zé é substituído por Júnior (Vinicius Oliveira, absolutamente irreconhecível), vaqueiro de aparelho nos dentes (porque acha bonito) e longas madeixas cuidadas, religiosamente, com chapinha. Outro personagem de destaque é Geise (Samya de Lavor), vendedora de cosméticos de dia e vigilante de uma fábrica de roupas à noite.

“São relações em suspensão. Os desafios foram expandir as noções de gênero e filmar o corpo. A fotografia teve que encontrar a distância certa para perceber o corpo e valorizar o tempo do personagem em cena”, comenta o diretor. A função coube ao mexicano Diego García, “que não tinha em seu imaginário a representação do Nordeste brasileiro”, explica Mascaro.

Quando o cineasta fala do corpo, refere-se a gente e a animais, sempre filmados muito de perto. Numa das (muitas) imagens marcantes, o personagem de Cazarré passa a noite com um cavalo. “Quando fomos filmar, o Juliano perguntou onde estava a prótese do animal. Expliquei que a cena seria real. Aí ele me disse que só faria se eu fizesse primeiro”, conta Mascaro.

Em tais momentos, foi essencial a experiência dos não atores – Carlos Pessoa, por exemplo, trabalha em vaquejadas. Outro momento de destaque, já na parte final da narrativa, foi a cena de sexo filmada uma única vez em plano-sequência.

 

 

 

SECA E FUTURO JUNHO

A cinematografia documental de Maria Augusta Ramos é reconhecida pelo cunho político, rigor estético e ausência de concessões. A diretora fez extensa investigação sobre a justiça no Brasil, que resultou na trilogia Justiça/Juízo/Morro dos Prazeres, iniciada em 2004 e concluída uma década mais tarde.

A diretora viveu 20 anos na Holanda, mas sempre passou longas temporadas no Brasil, onde filmava. Em 2014, ela fixou residência no Rio de Janeiro e começou a trabalhar em dois projetos. Seca e Futuro junho, os documentários mais recentes de Maria Augusta, foram lançados na mostra paulista. O segundo foi selecionado para a competição do Forum.Doc, que começa em 19 de novembro, em Belo Horizonte.

Com os filmes prontos e plena carreira em festivais, Maria Augusta admite: dificilmente levará, no futuro, dois projetos simultâneos. Seca foi rodado em janeiro e fevereiro de 2014; Futuro junho nas três semanas que antecederam a Copa do Mundo.

As duas montagens, no entanto, ocorreram concomitantemente. Algo bastante complexo, ainda mais pela distância entre os dois projetos. O primeiro investiga a seca endêmica no sertão nordestino (com filmagens em Pernambuco). O outro busca retratar as contradições da sociedade brasileira urbana a partir do cotidiano de pessoas que vivem em São Paulo e aguardam a chegada da Copa do Mundo.

Em Seca, pela primeira vez Maria Augusta realizou no Brasil um filme 100% nacional – os documentários anteriores eram coproduções com uma TV holandesa. “Quando você trabalha para a televisão, há restrições, ainda que exista respeito ao meu trabalho e o fato de saberem que não uso entrevista e depoimentos. Em Seca, pude fazer o que queria. Nunca tinha experimentado cinemascope. Usei planos longos com um tempo que refletisse o tempo do sertão, da espera. Essa liberdade me fez muito feliz, pois pude filmar sem amarras”, conta a cineasta.

Em Seca, um caminhão-pipa conduz a narrativa. “O projeto é muito antigo, antes mesmo do Justiça. Durante a pré-pesquisa, fiz novamente uma viagem pelo sertão e descobri um objeto que não existia quando fui lá pela primeira vez: o caminhão-pipa. Então, resolvi que o caminhoneiro deveria ser o condutor para retratar a região e a seca”, revela

Maria Augusta filmou no pernambucano Pajeú, já cantado em verso e prosa por Luiz Gonzaga. Chegou quando a região enfrentava um ano e meio de seca – o Rio Pajeú havia “morrido”. Associado a um programa do governo federal, o carro-pipa percorre as cidades levando água para a população. Com poucos diálogos, as imagens se destacam.

O filme acompanha, por exemplo, um homem tentando encontrar água enquanto escava a terra completamente seca. Por sua vez, Futuro junho tem viés mais econômico. Rodados há mais de um ano, os dois documentários, de certa maneira, previram o momento atual do país.

 

CAMPO GRANDE

 

Quando filmou seu primeiro longa de ficção, Mutum (2007), Sandra Kogut se emocionou especialmente com a cena em que a mãe dá o filho a um estranho. Aquilo viera do universo roseano (a narrativa é inspirada na novela Campo geral, de Guimarães Rosa), ainda que a diretora tivesse ouvido muitas histórias assim. Sandra não tirou a ideia da cabeça até resolver investigá-la mais a fundo.

Com previsão de chegada ao circuito comercial em abril, Campo Grande, o segundo longa de ficção da cineasta, é novamente centrado na infância – agora, na cidade grande. Trata-se da história de dois irmãos, Ygor e Rayane, moradores de Campo Grande, bairro da Zona Oeste carioca, deixados na porta da casa de Regina, em Ipanema, que está se separando e vive às turras com a filha adolescente.

Os meninos não querem deixar o local de maneira alguma, pois a mãe prometeu buscá-los ali. A relação dos garotos com a moradora, as diferenças entre as classes sociais e temas como abandono materno e caos urbano trazem a história para uma discussão bastante atual.

De certa maneira, Campo Grande dialoga com Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, ainda que estética e conceitualmente os dois filmes sejam distintos. Sandra filma com planos longos e lentos, poucos diálogos. Mas sua história também fica muito centrada na área de serviço, além de a chegada dos meninos interferir positivamente na relação mãe e filha.

Sandra Kogut não concorda com a comparação. “Em Que horas ela volta? está muito claro quem é bom e quem é mau. Em Campo Grande é quase o contrário, pois você vai entendendo, ao longo do filme, como tudo aquilo é complexo. Era importante não julgar os personagens, não fazer certos pactos com o espectador”, observa. Mesmo assim, a cineasta acredita que os dois longas se encontram em universos comuns do Brasil urbano, “em que a vida das pessoas está se transformando muito”.

O elenco infantil, absolutamente cru (os dois garotos passaram por sessões com a preparadora de elenco Fátima Toledo), foi selecionado depois de audição. Os personagens têm os mesmos nomes da dupla que os interpreta. “Não quero atuação, mas pessoas que tenham coisas em comum com o personagem”, conta Sandra. A menina Rayane do Amaral, aliás, mora em Campo Grande.

“Não gosto muito de improviso, pois ele dilui a tensão dramática de uma cena. Mas também não queria que os meninos decorassem o texto. É uma situação paradoxal, sobretudo porque não há muitas falas no filme, ela é reduzida ao essencial. Então, dizia para os meninos as falas deles num momento preciso, na hora da cena, quando eles já estavam no clima”, explica Sandra.

Campo Grande foi filmado no ano passado, quando a cineasta, depois de viver muitos anos entre a Europa e os EUA, voltou a morar no Rio de Janeiro. Em seu segundo longa ficcional, Sandra ainda é apresentada como documentarista. Um de seus trabalhos mais conhecidos é Um passaporte húngaro (2001), baseado na própria experiência dela.

“Nunca fui totalmente de uma turma. Tinha o sonho de fazer cinema, então comecei na videoarte circunstancialmente, porque nos anos 1980 não se sabia como chegar ao cinema. Depois, fui para o documentário. A questão é que sempre acreditei estar no mundo do audiovisual. Dependendo do projeto, pode ser instalação, película, curta, longa. Pra mim, o formato tem a ver com o projeto, e não com um plano de carreira. Na verdade, minha carreira nunca foi e nem vai ser em linha reta”, conclui.

 

CALIFÓRNIA

 

Em sua estreia em longa-metragem, Marina Person se baseou nas próprias memórias para se reencontrar com o pai, que pouco conheceu. Depois de Person (2007), que recuperou a obra do cineasta Luís Sérgio Person (1936-1976), a apresentadora de TV revira o passado para fazer sua primeira ficção.

Com lançamento previsto para 3 de dezembro, Califórnia é ambientado em 1984. O filme sobre adolescentes na São Paulo da década de 1980 traz muito da experiência da própria Marina (dois anos mais nova que a protagonista Estela) e de seus amigos.

A trama sobre as primeiras vezes – menstruação, transa, desilusão amorosa – traz dois temas bastante caros à geração da cineasta: Aids e Diretas Já. “Minha geração foi a primeira a iniciar suas experiências sexuais no começo da Aids. Somos filhos da geração 60, libertária, que queimou sutiã. Quando achávamos que as coisas iriam melhorar, logo na nossa vez veio a doença”, comenta a diretora, de 46 anos.

Em meio à explosão hormonal da adolescência, Estela (Clara Gallo) e seus colegas passam os dias ouvindo pós-punk britânico e sonhando com uma viagem à Califórnia. É lá que vive seu grande herói, o tio Carlos (Caio Blat), que escreve sobre música e vai a shows de David Bowie. O mundo da garota vem abaixo quando ele, inesperadamente, volta ao Brasil muito doente.

Apesar de nomes conhecidos – como Blat, Paulo Miklos e Virginia Cavendish –, Marina trabalhou com um elenco jovem pouco experiente, selecionado em quase 300 testes. Os atores, que tinham acabado de completar 18 anos quando as filmagens foram realizadas, em 2014, depararam-se com o universo analógico que não conheceram.

“A comunicabilidade daquela época é muito difícil para eles. Não havia celular nem computador. Tudo era escrito à mão ou na máquina de escrever. A Clara, mesmo, teve uma questão engraçada, pois não sabia mexer no gravador (Estela se comunica com o tio nos EUA com fitinhas cassete). Mas essas coisas são o entorno, pois as questões da adolescência são comuns e todos imediatamente se conectaram”, explica Marina.

Tanto por isso, Califórnia dialoga com o público acima dos 40 anos. O filme causa certo déjà vu com suas festinhas embaladas por Você não soube me amar, da Blitz, horas intermináveis ao telefone de conversa com os amigos e a sensação inesperada causada por lança-perfume.

A parte musical, tema sempre caro a Marina, VJ da MTV, é repleta de Joy Division, Cure, Bowie e Echo & The Bunnymen, além dos brasucas Titãs, Paralamas, Metrô e Kid Abelha.

Objetos de época – pôsteres, cubo mágico e uma infinidade de LPs, boa parte do acervo da própria diretora – garantem o clima oitentista. Há três externas vindas de filmes do período: as imagens do Viaduto do Chá e da Rua Augusta de Pixote (1981), dirigido por Hector Babenco, e o Minhocão de Cidade oculta (1986), de Chico Botelho.

 

 

* A repórter viajou a convite da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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