Aos 88 anos, Rubem Fonseca lança o volume de contos e poemas 'Amálgama'

Publicação mostra a permanência de temas e linguagem, sem perder a capacidade de dialogar com as novas gerações

João Paulo 16/11/2013 00:13
Marcelo Carnaval/AG
(foto: Marcelo Carnaval/AG)
Rubem Fonseca está com 88 anos. Tecnicamente, um velho. Mas o escritor, que sempre prezou a força do corpo, as demandas do mundo e as cobranças do sexo, certamente não gostaria de ser chamado assim. Arredio, com poucas aparições públicas, sem dar entrevista ou se deixar fotografar, Rubem Fonseca mantém com seus livros a janela que escolheu manter aberta para a vida. É assim que chega ao seu 29º título, 'Amálgama', coleção de contos curtos e alguns poemas.
Autor de obra considerável para quem já começou a publicar já maduro, Rubem Fonseca estreou como contista com 'Os prisioneiros', em 1963, ao qual se seguiram dois outros volumes de histórias curtas. Já era considerado um clássico de nascença com seus contos quando lançou o primeiro romance, 'O caso Morel', em 1973, abrindo novo flanco criativo. A partir daí, romances e contos se equilibram em sua bibliografia, com um único volume de crônicas, 'O romance morreu', e um pequeno ensaio autobiográfico, 'José'.

'Amálgama' tem um pouco do melhor Rubem Fonseca, inclusive a capacidade de, em meio ao aparentemente conhecido, trazer sempre a marca da originalidade. As histórias, a maioria em primeira pessoa, são intercaladas com alguns poucos poemas, quase prosa poética, de forte peso referencial, que parecem esboços de narrativas que ficaram apenas na intenção. Muito duro para ser poeta de verdade, o prosador no entanto parece revelar o lirismo bruto que lhe sopra das origens de sua invenção.

A carreira longa de Rubem Fonseca deu a ele uma característica que não é incomum na república das letras: uma certa má vontade que persegue os bons. Há um ressentimento atávico na imprensa e na academia com quem parece portar o segredo de escrever ao mesmo tempo para o grande público e para os iniciados. Depois de ser incensado por muitos anos pela força de sua criação, pela inauguração de novo cenário moral, pela limpidez de sua linguagem e pela brutalidade de seu universo, o esporte da vez passou a ser malhar o escritor. Assim, cada livro era sempre considerado um amaneiramento do anterior, como se Zé Rubem, como é tratado pelos amigos, tivesse perdido a mão em nome do sucesso.

O novo livro, 'Amálgama', é uma confrontação com a história deste juízo. O escritor retoma seus temas, enxuga ainda mais a linguagem, recupera algumas obsessões, faz uso de referências literárias e não recua diante da falta de sentido, da suspensão da ética ou da explícita manifestação do mal. O contista reencena a cada narrativa seu assumido ceticismo com o destino do homem, mas sempre baseado em uma forma vicária de justificação, que serve apenas ao personagem e não busca convencer o leitor de seu acerto. O título do livro, dessa forma, poderia ser lido de forma dupla: ao mesmo tempo funde várias intenções em um composto único e denso e, com certa liberdade, propõe-se a ser uma oferta de todas as formas de erro humano, uma certa gama de males.

Em “O filho”, uma jovem de 16 anos pensa em vender o bebê que carrega na barriga para que a mãe possa comprar uma dentadura. O fim é mais sórdido que a situação em si e mostra que os limites estão ainda além da pura maldade. Em “Decisão”, um matador de aluguel apresenta seus limites éticos depois de torturar uma mulher e se recusar a cumprir um contrato de extermínio. “Isto é o que você deve fazer” é a curta história de um homem que se especializou em assassinar gatos. O pungente “Conto de amor” narra a história de um pai que manda um filho para a guerra por amor. “O ciclista” recupera uma das atitudes presentes em outros momentos da obra fonsequiana: a busca da redenção por meio de uma forma peculiar de se fazer justiça contra as demasias dos homens e as leniências da lei.

O resumo das histórias, contudo, não dá a dimensão literária nem se aproxima da motivação humana do escritor. Rubem Fonseca não quer apenas contar histórias fortes, mas dizer certas coisas de uma maneira muito própria. Em cada um dos relatos ele oferece toda sua desconfiança com os poderes da linguagem (vários narradores são escritores que tentam se expressar e duvidam das palavras) e com a capacidade de entrar no coração das pessoas. Se nos primeiros livros do autor a força das circunstâncias tinha um peso evocativo de outras determinações (como falar em violência e exclusão durante o regime militar), agora o peso é mais real, quase expulsando a metáfora para fora de um mundo em que o mal é muito mais amplo que a ditadura que vem de fora.

Com 'Amálgama', Rubem Fonseca parece seguir a trilha de outro contista recluso, Dalton Trevisan, sofisticando ainda mais a linguagem quanto mais parece estar abrindo mão dela. Há quase um grau zero da escrita, um ponto em que as palavras parecem ter custado muito para ser escolhidas para figurar ali, mas sem que demonstrem o esforço que as sustenta. Senhor das histórias de mistérios, o escritor sabe que o crime perfeito não pode deixar marcas.

Corações solitários Rubem Fonseca é um autor sofisticado. E, ao mesmo tempo, é popularíssimo, na linha dos escritores americanos de hard boiled, uma de suas referências. Assim, ele oferece com sua grande arte o prato certo para cada leitor. O aficionado em histórias de crimes e violência vai se deparar com um mestre, principalmente nos contos. Quem procura outros materiais em seu amálgama vai dispor de uma visão de mundo cínica, construída de forma cuidadosa, habitada por gente aparentemente comum, como pequenos golpistas e solitários de várias estirpes, que são capazes de tudo para mostrar que estão certos. Mas não o fazem por meio de discursos, mas de ações determinadas. Como diria Chesterton, louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão.

Uma mesma história, dessa forma, vai permitir muitas leituras: da diversão (ainda que cruel) à leitura da alma das personagens e das circunstâncias morais de seu tempo e de seu meio, sobretudo da cidade do Rio de Janeiro. Com Fonseca, os leitores aprenderam a sair do explícito de suas palavras para mergulhar em uma espécie de hipertexto de outra realidade. O mesmo leitor que desliza na trama superficial pode, de repente, se ver enredado pela profundidade do que experimenta. Para o autor de 'O cobrador', não há nada mais profundo que o superficial. Ao mesmo tempo em que narra, o escritor ensina a ler nas entrelinhas que ele mesmo cria.

Um criador contemporâneo que parece lançar mão do mesmo método é o cineasta americano Quentin Tarantino, conhecido pela ambição de reprocessar lixo da cultura popular em arte de qualidade. Fonseca e Tarantino parecem hábeis jogadores no terreno da metalinguagem, extraindo ouro do monturo, fazendo amálgamas duráveis de materiais altamente perecíveis. O escritor brasileiro (que sempre se confessou cineasta frustrado, teve seus livros levados às telas e é pai de diretor de cinema) é muito mais radical e não se perde em gracinhas e violência quase pornográfica. Pode-se rir das matanças de Tarantino. Em Fonseca, a violência sempre causa asco.

Há em tudo que Rubem Fonseca escreveu, e 'Amálgama' não é exceção, uma defesa individualista da existência. Não que a convivência e a política deixem de se manifestar em seu mundo, mas sempre o fazem a partir do homem só e de suas frustrações em alcançar a felicidade ou fazer justiça. E no mais extremo limite do sujeito parece restar apenas o corpo. Rubem Fonseca sempre foi siderado pela dimensão física da existência, pela força do sexo, pelos desvios da fisiologia, pela afirmação da consumação como destino inevitável. Sexo e morte são seus limites, os líquidos corporais e as impossibilidades da vida plena são seus desvios e geram histórias cheia de dor e fúria.

O último conto do novo livro chama-se “Foda-se” e é sobre um homem que descobre que perder coisas é o caminho para recuperar a energia de vida. Quando nada mais interessa além das funções mais básicas da carne, um grande foda-se ao mundo das convenções é uma afirmação tão fisiológica quanto política. Rubem Fonseca é capaz de dar dimensão metafísica até a um palavrão.

AMÁLGAMA
• De Rubem Fonseca
• Editora Nova Fronteira
• 160 páginas, R$ 29,90