'Somos a piada do mundo', diz Adriana Calcanhotto

Cantora lança nesta sexta (29) 'Só canções da quarentena', álbum feito durante o confinamento. Em entrevista, ela fala sobre música, lives, política brasileira e a vontade de cortar o cabelo

Guilherme Augusto 29/05/2020 07:44
Leo Aversa/Divulgação
Adriana Calcanhotto viajaria para Portugal, onde dá aulas em universidade, quando foi declarada a pandemia. Ela está em quarentena em sua casa, no Rio de Janeiro (foto: Leo Aversa/Divulgação)

Pouco mais de um mês em quarentena foi o suficiente para Adriana Calcanhotto compor, produzir, gravar e mixar as nove músicas do disco Só canções da quarentena, que chega nesta sexta-feira (29) às plataformas digitais, às vésperas do primeiro aniversário de Margem, 12º registro de estúdio da cantora, lançado em 7 de junho de 2019.

Imprevisto e cheio de referências ao presente, o álbum produzido em parceria com o paraense Arthur Nogueira revela o que pensa a cantora e compositora sobre o momento que o Brasil e o mundo atravessam, diante da pandemia do novo coronavírus, a partir do lugar privilegiado de quem pôde isolar-se para exercer um ócio fortemente criativo. Resultado de um exercício de composição a que ela se propôs e dedicado a Moraes Moreira (1947-2020), o disco fala da estranha sensação suscitada pelas ruas vazias durante o confinamento e da indignação dos brasileiros que não podem ir às ruas se manifestar.

Uma das faixas é dedicada ao funk e outra traz o sample de um panelaço gravado em 22 de abril no Bairro da Gávea, no Rio de Janeiro. Para ela, "até o gado tá baratinado". Pioneira no mundo das lives, Adriana Calcanhotto avalia, em entrevista ao Estado de Minas, que o formato não substituirá os shows ao vivo. Ela conta ainda que não desgosta de passar grandes períodos dentro de casa e comenta sobre o atual momento do Brasil. 

Quando o mundo ainda estava tentando entender como agir diante do isolamento, você foi uma das primeiras artistas brasileiras a iniciar as lives. Quando e como essa ideia surgiu? Qual é a sensação de estar dentro de casa se apresentando para centenas de pessoas, só que diante de uma câmera?

Em 20 de março, fiz a primeira live. E a sensação foi uma loucura, não é como estar cantando para a câmera. É engraçado. Na live que fiz no último sábado (23), quando acabou, a sensação, a minha emoção, os meus sentimentos, toda a coisa física era a de ter feito um show, estar saindo do palco mesmo. É impressionante. Gostei muito disso e acho que é um formato que está sendo inventado agora, sendo descoberto agora, e eu estou muito interessada nele. Gosto muito de fazer.

No Brasil, em especial entre os artistas da música sertaneja, as lives passaram por diferentes fases. Houve as polêmicas, as associações com ideais preconizados pelo governo federal e agora há uma busca pela monetização desse formato. Acredita que as lives substituirão os shows ao vivo?

Não acredito que as lives substituirão aquilo que acontece quando se tem uma plateia reunida. A catarse, a presença física das pessoas numa sala, a quantidade de pessoas numa sala, tudo isso influi na acústica dos shows. Elas são uma nova possibilidade. É como dizer que os computadores vão substituir os livros. Não. Acredito que tudo só é soma.

Você se propôs a produzir um disco durante a quarentena. Diferentemente de Margem, que levou uma década para ser elaborado, Só canções da quarentena ficou pronto em 43 dias. Como você decidiu que os dias em quarentena seriam usados para compor um novo disco? Produzir isolada, impedida de sair de casa, é mais fácil?

Não sentei e decidi: “Vou fazer um disco na quarentena”. Na verdade, fui produzindo canções, me disciplinando em escrevê-las. A composição do Só foi muito parecida com o período em que sentei para compor as canções do Senhas (1992). Foi num verão muito chuvoso, e a maioria das pessoas que trabalhavam comigo eram do Sul, de Porto Alegre, então elas voltaram para lá de férias, e eu fiquei no meu apartamento, sozinha, fazendo mais ou menos a mesma coisa que tenho feito nesta quarentena: levantar, fazer café e canção. Só que, naquela época, estava sentando para fazer o meu segundo disco, pensando em uma safra de canções para compor um disco. O Só é mais parecido com um exercício de composição que eu daria para os meus alunos. Poderia, na aula, pedir para eles me entregarem uma canção até o almoço.

O título do disco traz um jogo de palavras interessante e as canções emanam melancolia. Você passou esses dias de isolamento sozinha? Estar de quarentena a arrebatou?

Não desgosto de estar em casa. A sensação que tenho quando estou é de não estar na estrada, não estar trabalhando, o que me permite relaxar um pouco, me proporciona um ócio criativo. A melancolia, a tristeza presentes no disco não têm a ver com o fato de eu não poder sair de casa, mas têm a ver com o todo e sobretudo com as pessoas que deveriam estar em casa e não conseguem ficar porque elas precisam fazer dinheiro. Isso,  sim, me arrebata mais do que ficar em casa, que acho que é o mínimo que posso fazer. É a colaboração de todos que podemos ficar; temos que dá-la. Mas fiquei sozinha, continuo sozinha e, para mim, não tem um grande problema em ficar sozinha, arrumar a casa, fazer faxina, cuidar dos bichos, cuidar da roupa. Isso tudo são formas de viver o presente, são maneiras de meditar. Lavar a louça é uma grande chance meditação.

A produção é assinada em parceria com Arthur Nogueira. É a primeira vez que trabalham juntos? Além de ter sido escrito em isolamento, o disco também foi gravado remotamente. Como foi organizar esse trabalho com os outros músicos? Vocês tinham uma rotina de reuniões ou um grupo no WhatsApp para discutir os arranjos?

Sim, essa é a primeira vez que trabalho com ele. Para produzir o trabalho, a gente fez pouca reunião, na verdade. Tive um empresário que dizia "muita reunião é sinal de pouco trabalho".  Arthur me mandava algumas ideias, eu as ouvia e dava a minha opinião. Nós conversávamos mais quando o disco já estava quase finalizado. Ele sendo compositor, um leitor de poesia, foi sentindo a ambiência das canções e chamando as pessoas que achava interessantes para o projeto. A ideia de chamar bastantes músicos era também para fazê-los trabalhar, ajudá-los de alguma forma, eles que também estão parados em casa, sem trabalho. Só que a maioria deles não aceitou receber e deu o trabalho, assim como eu estou dando. Achei isso incrível.

Na letra de O que temos você faz alusão às manifestações que ocorrem pelas janelas Brasil afora. Os panelaços ganharam até um sample na faixa. O que você acha da ressignificação desse tipo de manifestação, antes usado por pessoas de direita e agora apropriado pela esquerda?

Moro na floresta, aqui não se ouve nada da vida urbana do Rio de Janeiro, então ficava sabendo deles sempre pelas notícias. Essas manifestações são para reclamar, não importa se é direita ou esquerda. Quando as panelas batem, é sinal de que alguma coisa não está bacana.

O funk não é novidade na sua discografia. Mas desta vez você optou por colaborar com um DJ do gênero, o Dennis. Como surgiu esta parceria? Qual a sua relação com o funk hoje? Você acompanha as novidades?

Não acompanho as novidades do funk. O que me interessa nele é a batida, sempre foi, desde Fico assim sem você e até antes. Sempre a achei incrível, e ela vem evoluindo, possui variações, sem dúvida é muito interessante. Fico impressionada com o suingue mesmo, me chama muito a atenção, é o mesmo tipo de fascínio que tenho, por exemplo, pelo Olodum. É a síntese de alguma coisa muito potente. A ideia de propor uma parceria com o Dennis surgiu depois que compus Bunda lelê, música na qual quis fazer uma brincadeira com algumas das palavras mais usadas no funk, como “senta”, “vai” e “bunda”. Achei que Dennis seria a pessoa ideal para produzir a faixa,  porque ele é do funk, mas tem um lado muito lúdico com o qual me identifico. Ele sampleia brinquedos, usa os sons de maneira criativa. A gente não se conhecia, conversamos por telefone, mostrei algumas coisas que já havia feito para ele, que foi muito generoso em aceitar essa parceria.

No disco há duas canções que parecem falar de saudade – Lembrando da estrada e Corre o mundo. Como tem sido estar longe dos palcos e da estrada? Você ficou um bom tempo sem se apresentar ao vivo, mas hoje considera que estar diante do público é algo vital?

Nos últimos dois anos, fiz muito show, levei uma vida de estrada, que é muito interessante, mas igualmente desgastante, cansativa fisicamente. Você dorme pouco, come mal, fica de aeroporto em aeroporto. Durante duas horas, no máximo, está no palco com as pessoas, que é o que justifica toda a maluquice do deslocamento. Então, quando termina uma turnê, tanto show que fiz nos últimos anos, estar em casa dá um alívio, dá um relaxamento, mas em seguida me peguei com saudades da estrada e fiz essa canção. Eu me peguei pensando, sentindo falta, mas não só da parte boa, daquelas duas horas no máximo, mas sentindo falta do perrengue, porque aquilo também é uma coisa que desafia você,  colocando-a em situações difíceis. Você vai ter que vencer aquilo, e não só vencer como estar inteira durante as tais duas horas. É bastante desafiador e eu me peguei gostando muito disso.

Com sua música e seu posicionamento, você deixa claro o quanto acredita na gravidade desta pandemia. No Brasil, o presidente da república ainda vive um negacionismo em relação à COVID-19. Qual você acha que é o remédio para esse “vírus da ignorância” que vem nos acometendo?

O remédio é votar direito. É votar pela consciência. Tem muita gente arrependida de ter votado no Bolsonaro porque não olhou para ele, olhou para o antipetismo quando estava na urna. Desde o início o presidente mostra a que veio, não tem nenhuma novidade no que está acontecendo agora. Não há estelionato eleitoral no caso do Bolsonaro, infelizmente para nós. Somos a piada do mundo.

Ficou insustentável viver no Brasil de 2020?

Por alguns aspectos, acho que é insustentável mesmo. Essa situação não pode ficar desse jeito. Mas insustentável não é impossível, insustentável quer dizer “vamos à luta”.

E para o momento posterior à pandemia, você acredita que o que nos espera é um mundo melhor? Você acredita numa vida normal depois dessa paralisação mundial?

Não gosto muito dessa ideia de voltar. Não volta, o tempo passou. O mundo não é mais aquele de três meses atrás. Além disso, as coisas não estavam normais, portanto “voltar ao normal” realmente não existe. O que existe é a gente se inventar daqui pra frente. Tudo o que está acontecendo agora é uma grande oportunidade. Uma coisa que me impactou muito durante a feitura das canções foi a capa da Vogue Itália, toda branca, falando em começo, em recomeço, em renascimento. Achei isso muito interessante.

E qual a primeira coisa que você pretende fazer quando as coisas voltarem ao “normal”?

A primeira coisa que pretendo fazer quando as coisas voltarem ao anormal é cortar o cabelo, assim como todo mundo.


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Só canções da quarentena
. Adriana Calcanhotto
. Sony Music
. Disponível nas plataformas digitais

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