Odair José propôs 'hibernar' um ano antes do confinamento

Isolado em casa, cantor e compositor  lamenta ter estado tão em sintonia com os acontecimentos, ao lançar seu 37º álbum, no ano passado

Mariana Peixoto 28/04/2020 07:32
Rama de Oliveira/Divulgação
Odair José, cantor e compositor (foto: Rama de Oliveira/Divulgação)

Um ano atrás, Odair José, de 71 anos, lançava seu 37º álbum, Hibernar na casa das moças ouvindo rádio (Monstro Discos). A canção que abre o trabalho, Hibernar, tem início com os seguintes versos: “Vou me hibernar por um tempo/me avise quando a cena mudar/O mundo está de ponta cabeça/espera ele aprumar”.

“Parece uma profecia, às vezes sinto até um arrepio. Não estou querendo ser o cara da profecia, mas já via tempos muito difíceis pela frente. Que loucura é essa que estamos vivendo? Lamento que até nisto eu acertei”, afirma Odair de sua casa, em São Paulo. 

Na opinião dele, a pandemia do novo coronavírus só veio se somar a outras: “A pandemia dos costumes, da política. Erramos muito, e, para completar, veio isso aí. Não vou dizer que é uma praga, não sou bobo a ponto de dizer uma besteira dessas, mas o coração da pandemia já existia”, afirma.

Ainda que os versos de Hibernar caiam como luva para os dias atuais, a intenção da música era outra. No álbum de forte acento roqueiro, o cantor e compositor goiano criou um universo de personagens que se encontram em uma “casa de tolerância”, onde tudo é permitido, desde que devidamente combinado. As canções, em tom de crônica urbana direta e simples, versam, em boa parte, sobre os excluídos. O disco é um convite à desobediência.

“A hibernação na casa das moças era, até certo ponto, muito agradável. Agora, estamos, por bom senso e coerência, hibernados em casa. As pessoas voltaram a estar em família, e isso vai ser uma overdose de gente junto. Acho que, quando passar este período, as pessoas deverão se afastar, pois estar juntos às vezes é muito sufocante”, comenta.

Como todo mundo, Odair teve projetos suspensos. O mais imediato deles seria uma turnê para celebrar os 50 anos de seu álbum de estreia – seria um show grande, com 30 canções de todas as fases. 

No início de 1970, foi lançado o compacto (single) de Minhas coisas (Rossini Pinto), canção que até hoje integra o repertório do artista. No meio daquele mesmo ano, saiu o LP Odair José, que reunia 11 outras faixas, além dessa. “Foi um bom trabalho, apesar de um ser jovem demais, ter 21 anos. Estava naquela fase do aprendiz”, comenta.

Enfim, estava tudo programado para que o show comemorativo fosse para a rua neste mês de abril. “Várias coisas agendadas foram suspensas. Não sou muito ligado nesse negócio de live, tenho participado quando me convidam, porque é uma forma de chegar às pessoas. Mas está tudo suspenso.” Tudo inclui também o trabalho em sua produtora. Pelo menos duas dezenas de profissionais estão parados.

“É complicado. Neste ramo de trabalho, nem sabemos quando poderemos voltar. Para mim, só quando tiver um antiviral, uma vacina, pois fica difícil reunir pessoas. O bom senso diz que não”, ele afirma

Ficar em casa não é o grande problema para Odair, mas sim ficar longe do palco. “Faço isso desde criança. Até consigo sobreviver, pois tenho certa estrutura. Mas talvez eu esteja dentro do 1% dos artistas brasileiros que têm estrutura para sobreviver um tempo parado. Acho que em 2020 vamos ficar assim mesmo, com a esperança de que tudo passe logo.”

E este “tudo parado” não se refere só à pandemia de coronavírus. “Antes de acontecer a última eleição, eu já tinha certeza de que o Brasil precisava de 10 anos (para sair da crise), já que ele foi travado. Agora, acho que precisa de 20, nem sei se vou ver.” 

Na opinião dele, as pessoas erraram na escolha na base da “pirraça”. “Não queremos isso, então vamos colocar aquilo. Só que ninguém esperava que a escolha fosse tão errada.”

“Se alguém me disser: ‘Odair, o avião está parado, leva para Belo Horizonte.’ Eu vou dizer: ‘Não sei pilotar, vamos arrumar um piloto’”, ele metaforiza. “O maior incompetente não é o que diz não saber, mas o que se mete e não sabe fazer. O governo que temos hoje no Brasil será reconhecido como um erro histórico. Agora, também não acho que tem que sair a toque de caixa. Tem que esperar passar e torcer para que o pior não seja ainda maior.”

ACADEMIA

Enquanto espera, Odair, que pouco sai de casa, está sempre em movimento. O frequentador assíduo de academia está se virando como pode. “Moro num lugar que tem espaços, então dou minhas caminhadas, pois não posso parar. Agora, o resto é no improviso e olha que nunca gostei de fazer nada improvisado.”

Música ele também tem feito, é uma necessidade. “Não sei quando vou parar. Antigamente, a gente usava uma gravadorzinho chamado ‘espião’. Hoje, com o celular, às vezes estou no meio de uma caminhada e vem ideia de uma melodia. Aí deixo registrado, depois coloco a letra.” 

Cada caso é um caso. Uma vontade que ele tinha era de falar de seres humanos. Acabou saindo em uma parceria com Arnaldo Antunes – também prevista para virar show em 2020, vai ter que esperar até sabe-se lá quando.

“Já o caso da Pílula (Uma vida só, um de seus maiores sucessos, do álbum de 1973) nasceu de uma coisa pensada, pois eu queria fazer uma música sobre isso”, comenta ele. Da mesma fase, e também um dos clássicos de sua carreira, Vou tirar você desse lugar, com tema social, foi composta da mesma maneira.

Para Odair José, o período que vai até 1977 é o grande momento da primeira fase de sua carreira. O auge produtivo culmina com a ópera-rock O filho de José e Maria. Originalmente, o álbum teria 18 canções, mas, por ação da censura, só 10 foram liberadas. Nas músicas, ele narra a história de um Jesus que descobre a sexualidade e se envolve com drogas.

Um dos artistas mais populares da época, Odair se tornou também um dos mais censurados (só perdeu para Chico Buarque). Mesmo cortado quase pela metade, o trabalho foi condenado, não tocou em lugar nenhum e o cantor foi ameaçado de excomunhão pela Igreja Católica.

Naquele período, ele se recorda, seus álbuns vendiam 1 milhão de cópias. O filho de José e Maria mal alcançou as 60 mil, “tido na época como um grande erro”. Recentemente, ele ganhou nova edição, em LP, pela coleção Clássicos em vinil, da Polysom. É uma nova vida para um disco raro e muito conceituado.

Gravado com o trio de jazz Azymuth, O filho de José e Maria foi recuperado em uma série de shows que Odair fez há dois anos, com o próprio grupo com o qual gravou. Mesmo com o lançamento em vinil 40 anos mais tarde, ele acredita que o trabalho pode ir além.

“Acho que o disco deveria ter tido uma atenção maior por parte da Sony (gravadora que detém os direitos deste trabalho). Eles ainda não perceberam o produto que têm nas mãos. É um disco importante, atual para os dias de hoje.”

Que o diga uma das faixas, O sonho terminou. “Todos nós já nascemos com as asas partidas/Todos nós estamos presos na gaiola da vida.” Mais uma vez, Odair acertou na mosca.

MAIS SOBRE MUSICA