'Idoso, hipertenso e diabético', Macalé transforma a música em vacina

Isolado no interior fluminense, o cantor e compositor Jards Macalé revela: 'Meus dias têm sido assim, toco com o João Gilberto, depois com Miles Davis e com o Jimi Hendrix'

Guilherme Augusto 03/04/2020 08:57
José de Holanda/divulgação
(foto: José de Holanda/divulgação)

Em um tempo que agora parece distante, quando bares e botecos podiam ser frequentados livremente, sem o espectro amedrontador de um vírus invisível ou decretos que exigem dos comerciantes portas fechadas, quatro amigos se reuniram para jogar conversa fora no Centro do Rio de Janeiro. Papo vai, papo vem, um deles diz a que veio: contratado para fazer um show no tradicional Teatro João Caetano, com capacidade para mais de 1 mil pessoas, tremeu na base e decidiu pedir ajuda aos outros três.

Protagonistas dessa anedota, os músicos Moacyr Luz, Jards Macalé, Zé Renato e Guinga saíram, naquela noite, do centenário Bar Luiz com as bases do que se tornaria o celebrado show Dobrando a Carioca, cujo DVD está disponível, na íntegra e gratuitamente, no canal da gravadora Biscoito Fino no YouTube.

“Foi um projeto muito divertido de fazer e também foi um sucesso”, comenta Jards Macalé, em entrevista por telefone. “Desde o início, a ideia de reunir amigos para tocar músicas de que gostamos, por prazer, sempre me agradou. O repertório, então, se transformou em uma forma de celebrar as composições de cada um e também de tocar cancões de colegas que a gente admira. Passamos 10 anos fazendo esse show, percorremos o Brasil todo e nos apresentamos para casas cheias, mas o que mais me marcou foi o quanto foi divertido.”

Apesar do repertório imerso em clássicos da música popular brasileira, o cantor e compositor acredita que o título do projeto ainda é uma incógnita para quem desconhece o vocabulário da boemia carioca. “Mas eu explico”, diz Macalé. “A ideia inicial, pode-se dizer, nasceu no Bar Luiz, que fica na Rua da Carioca. Literalmente dobrando ela, ou seja, numa rua que a atravessa, fica a Praça Tiradentes, onde está o Teatro João Caetano, que abrigou a nossa primeira apresentação. Por isso o nome. Muita gente não entende, acha que é 'dobradinha carioca', mas a gente explica, sem problemas”, diverte-se.

Gravado em 2016 no palco do Sesc Ginástico, no Rio de Janeiro, o show alterna canções autorais dos quatro com clássicos como Um a zero (Pixinguinha/ Benedito Lacerda/ Nelson Angelo), A saudade mata a gente (Antônio Almeida/ João de Barro), Acertei no milhar (Wilson Batista/ Geraldo Pereira) e Nega Dina (Zé Keti). No arco que prestigia o trabalho de Macalé, não ficam de fora Vapor barato, parceria dele com Waly Salomão, e O mais que perfeito, composta com Vinicius de Moraes.

Do alto de seus 77 anos, Jards Macalé considera o DVD uma boa pedida para estes dias de quarentena. “Idoso, hipertenso e diabético”, como ele mesmo frisa, o carioca está isolado em seu sítio, localizado no município de Itatiaia, na divisa do Rio de Janeiro com Minas Gerais. Ao lado da mulher, do irmão e da cunhada, ele tem passado os dias revisitando a própria obra e ouvindo muita música.

“Desde que começamos a quarentena, há duas semanas, só saí daqui ontem para tomar a vacina da gripe. Quando voltamos, cumprimos todo o protocolo de higienização, mesmo que aqui ainda não tenha nenhum caso de coronavírus”, conta.

“Para passar o tempo, tenho me estudado e entrado em contato com meu acervo. Ontem mesmo, assisti a um DVD raríssimo do João Gilberto, ultra bem gravado no Japão. Meus dias têm sido assim, toco com o João Gilberto, depois com Miles Davis e depois com o Jimi Hendrix. Só espero que depois disso tudo, dessa crise, a humanidade saia melhor, porque se não sair, aí já era.”

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