Além de Juntos e shallow now: as melhores piores versões brasileiras

Desacertos na versão de Shallow remetem a fenômeno antigo no Brasil, que convive com pérolas que ajudaram a impulsionar o pop nacional e com bizarrices desde os anos 1950

por Mariana Peixoto 26/05/2019 08:00

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(foto: Divulgação)

“Juntos e shallow now”. Não é para entender o que não é para ser entendido. Desde o domingo (19), quando foi lançada Juntos, versão de Paula Fernandes para Shallow, a parte que mistura português e inglês (juntos e raso agora) se tornou o assunto mais comentado da música pop na última semana.

Paula Fernandes já assumiu não ter gastado mais do que duas horas para escrever Juntos, gravada em dueto com o colega de sertanejo Luan Santana, aqui fazendo as vezes de Bradley Cooper na oscarizada música de Lady Gaga para o filme Nasce uma estrela. O verso polêmico, que rendeu memes a perder de vista, foi solução fácil para manter a sonoridade. Coisa que não seria possível se fosse seguida a ideia do verso original (“We’re far from the shallow now” ou Estamos longe do raso agora, em tradução livre).



O barulho causado por “Juntos e shallow now” não é novo. Volta e meia, a versão de um hit estrangeiro para lá de discutível assola rádios e redes sociais. Mas em meio às adaptações apressadas, há muita coisa boa.

Outras versões discutíveis
Psycho killer (Talking Heads) 
Então se joga (Henrique Costa)

Primeiro (e até hoje) maior hit da banda nova-iorquina, Psycho killer (1977), como o próprio título diz, acompanha um assassino serial. Na versão do sertanejo Henrique Costa, virou Então se joga (2013), sobre mulheres, bebedeira e balada. O refrão? 
“Então se joga que vai começar/Fa fa fa fa”.

Hallelujah (Leonard Cohen) 

Hallelujah (Sam Alves)
Lançada em 1984, é a canção mais conhecida do canadense, com pelo menos 300 registros. A versão em português estourou em 2013 com Sam Alves, vencedor do The voice. Poeta, Cohen recheou a letra de referências bíblicas – de Sansão e Dalila ao rei Davi. Na versão brasuca, há versos rasteiros, como “precisamos gritar ao mundo aleluia”.

Ziggy Stardust (David Bowie) 
Ziggy Stardust (Seu Jorge)

Canção do álbum-conceito que Bowie lançou em 1972, retrata seu alter ego, um astro do rock do outro mundo que veio à Terra para salvá-la. Em 2005, Seu Jorge lançou The life aquatic studio sessions, com a trilha do filme A vida marinha com Steve Zissou. São só versões de Bowie. Nos versos “jorgianos”, o rock star alienígena é capaz de cantar “nega abaixa essa saia/ia ia ia/gente assim se atrapalha”.

The blower’s daughter (Damien Rice) 
É isso aí (Ana Carolina)

O irlandês Damien Rice estourou em 2004 graças à inclusão da balada na trilha do filme Closer. Rapidamente, Ana Carolina fez sua versão. É isso aí remete ao verso inicial de Rice, “And so it is” (E assim é). A intenção da letra em português não mudou. A chatinha É isso aí, gravada pela cantora com Seu Jorge, acabou fazendo muito mais sucesso no país do que a original. E a mesma fonte rendeu outra canção em português: Então me diz, versionada por Zélia Duncan e gravada por Simone.

Get lucky (Daft Punk) 
Amor e sorte (Tony Salles)

Esta daí foi a Shallow/Juntos de 2013. O pagodeiro Tony Salles gravou Amor e sorte, versão de Get lucky, do duo francês Daft Punk (com Pharrell Williams e Nile Rodgers), a música mais tocada (e dançada) daquele ano. O refrão virou  “Viu que o nosso amor é o maior/Vem celebrar o que há de melhor”

VERSÃO NÃO É TRADUÇÃO
Parte considerável do cancioneiro pop no Brasil foi criada a partir de versões. Pré-Jovem Guarda, os irmãos Celly e Tony Campello se popularizam com Estúpido cupido (Stupid cupid, de Howard Greenfield e Neil Sedaka) e Banho de lua (Tintarella di luna, de Franco Migliacci e Bruno De Filippi).

A Jovem Guarda foi exímia em popularizar canções roqueiras que vinham de fora. Meu bem, de Ronnie Von, veio de Girl, dos Beatles, também fonte de Menina linda (I should have known better) e Feche os olhos (All my loving), de Renato e Seus Blue Caps.

Foi uma versão, aliás, que uniu Roberto e Erasmo Carlos. Ainda nos anos 1950, o primeiro pediu ao segundo uma leitura própria para Hound dog, de Elvis Presley. Começaria ali a mais célebre das parcerias do Brasil. A cantora Kátia se lembra que seu álbum de 1987 estava praticamente pronto ao receber uma ligação de Roberto, seu padrinho artístico, dizendo que havia feito com Erasmo uma versão para ela.

“Eu não conhecia a original (I should have been easy, de Bob McDill) quando ganhei aquele presentão”, relembra. A música em questão, Qualquer jeito, se tornou seu maior sucesso. “O refrão (“Não está sendo fácil”), aliás, se tornou o mote de nosso momento político”, acrescenta.

“Versão não é tradução. Há ideias que você consegue traduzir. Outras, não, já que as rimas nem sempre se repetem em outro idioma”, observa Martim Cardoso. Tradutor e intérprete – “Mas para uma boa versão você tem de ter uma boa veia poética” –, ele cuidou de algumas canções que o Paralamas do Sucesso lançou para o mercado latino (Quase um segundo virou Casi un segundo; Carro velho, Coche viejo).

TRADUÇÃO LIVRE
Chico Amaral, reconhecido como letrista de sucessos do Skank (Garota nacional, Te ver, Tão seu, Três lados), já versionou Bob Dylan (I want you virou Tanto) e The Police (Wrapped around your finger virou Prendido en tus dedos, em espanhol). Ambas registradas pela banda mineira.

“A do Police ficou totalmente fiel ao original, foi como um milagre”, comenta Amaral. Já a versão de Dylan, que ele fez nos anos 1980, foi quase um “quebra-cabeças”. “Foi um trabalho cuidadoso. Quando o versionista consegue passar a atmosfera da obra, o ouvinte daqui, que pode nem conhecer a música original, recebe uma segunda obra, que, de certa forma, espelha a original.”

I want you é aberta com os seguintes versos: “The guilty undertaker sighs/The lonesome organ grinder cries”. Já Tanto começa assim: “Coveiros gemem tristes ais/E realejos ancestrais”. “Undertaker é coveiro mesmo. Já na segunda frase, a tradução seria o tocador de realejo solitário chora. Como as línguas são diferentes, preferi manter a sonoridade da primeira estrofe. Além disso, imagens extravagantes fazem parte do universo de Dylan”, explica Amaral.

Criador e criatura juntos. E felizes
A liberação da versão de Shallow levou uma semana, segundo o que Paula Fernandes declarou. Mas o processo pode demorar mais. Para conseguir a autorização, o versionista tem de procurar a editora que, no Brasil, responde pela canção original. Envia a letra em português, a tradução literal dela para a língua do autor, o currículo e uma gravação, se já houver, da versão. A editora no Brasil é que faz todo o processo com a editora estrangeira.

No passado, o processo era bem moroso. O Nenhum de Nós estava em estúdio preparando seu segundo álbum, Cardume (1989) e, num intervalo, os integrantes começaram a tocar Starman, de David Bowie. “Quando o produtor (Reinaldo Barriga) voltou para o estúdio, falou que a gente deveria fazer uma versão em português”, relembra o vocalista Thedy Corrêa.

Em um primeiro momento a banda resistiu. “Mas ele disse que, se a gente era tão fã, deveria fazer como uma homenagem.” A banda resolveu criar O astronauta de mármore usando como referência o personagem Major Tom. “Naquela época, tivemos de mandar para a Inglaterra um cassete com a versão”, relembra Thedy. Demorou tanto para liberarem que o álbum saiu com algum atraso.

O sucesso foi estrondoso e, no ano seguinte, quando Bowie fez seu primeiro show no Brasil, ao tocar Starman, ele disse, do palco do Morumbi: “Vou tocar uma música que vocês sabem cantar em português”, conta Thedy, que, anos mais tarde, atuaria como versionista de outros artistas.

Fez versões para o português de canções do argentino Fito Paez e do espanhol Alejandro Sanz (para os próprios artistas). No caso de Sanz, passou com ele uma temporada na Espanha, fazendo a direção do álbum para o mercado brasileiro.

Já O astronauta de mármore, 30 anos mais tarde, continua sendo um dos maiores hits do Nenhum de Nós. Tanto que a versão ganhou outros registros: Só pra Contrariar, Biquíni Cavadão e Seu Jorge já gravaram, em bom português, as aventuras do Major Tom.

Autor e adaptador
Canção da América (Milton Nascimento e Fernando Brant) só existe por causa da banda 14 Bis. Ela, na verdade, é versão de Unencounter. A original, em inglês, foi composta em homenagem a Ricky Fataar, multi-instrumentista sul-africano amigo de Milton. Foi registrada no álbum Journey to dawn (1979). Na época, prestes a lançar seu disco de estreia, foi oferecida ao 14 Bis esta canção. A banda aprovou, desde que fosse em português, e não em inglês. Assim, Brant fez uma versão de sua própria letra.

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