Fabiana Cozza desabafa sobre polêmica que a tirou de elenco de musical

Cantora traz a BH show de seu disco em homenagem a dona Ivone Lara e diz que "erraram o alvo" quando a atacaram por ser "branca demais" para interpretar a sambista em espetáculo biográfico

por Ana Clara Brant 30/04/2019 23:03
Marcos Hermes/Divulgação
Marcos Hermes/Divulgação (foto: Marcos Hermes/Divulgação)
Discos-tributo não são uma novidade no mercado fonográfico. Somente neste ano já foram lançadas as homenagens de Nando Reis para Roberto Carlos, Roberta Sá para Gilberto Gil, Nana Caymmi para Tito Madi, e Mart’nália para Vinicius de Moraes. Embora sejam todos álbuns de qualidade, talvez nenhum deles tenha a propriedade de Canto da noite na boca do vento (Biscoito Fino), que Fabiana Cozza dedica a Dona Ivone Lara (1922-2018).

Além de ter tido a Rainha do Samba como sua principal influência, a cantora paulista conviveu com Dona Ivone, dividiu com ela palco e estúdio e teve o aval da mestra para interpretar seu papel num outro tributo, um musical biográfico. No próximo sábado (3), Fabiana traz a Belo Horizonte o show do disco, no qual tem a companhia de Alessandro Penezzi (violão), Henrique Araújo (cavaquinho e bandolim) e Douglas Alonso (percussão).

Das 14 faixas do álbum, apenas uma inédita é inédita e não leva a assinatura da homenageada. A dama dourada, parceria de Vidal Assis e Hermínio Bello de Carvalho, é também o nome de um show que Fabiana Cozza, de 43 anos, fez pouco antes da morte de Dona Ivone Lara. “Pedi para que eles fizessem essa composição que fala sobre ela e da minha relação com Dona Ivone também”, conta. A canção ganhou o charme adicional do sax alto de Nailor Proveta.

O nome do CD foi uma sugestão do escritor Marcelino Freire, amigo da cantora, e é um verso tirado de Sonho meu, sucesso de Dona Ivone Lara não incluído no repertório do álbum. Não que os hits não estejam no disco, mas Fabiana Cozza também quis privilegiar um lado B da dama do samba. “Alessandro Penezzi e eu nos debruçamos sobre várias obras. A gente ouvia e ia se apaixonando pelo repertório. Eu quis trazer algumas parcerias importantes da vida dela, com Délcio Carvalho, Ney Lopes, Paulo César Pinheiro, Mano Décio, o próprio Hermínio, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, por exemplo, e também composições que ela fez sozinha”, comenta.

Não faltaram clássicos como Alguém me avisou (Dona Ivone Lara) e seus versos “Eu vim de lá/ eu vim de lá pequenininho”, que contou com a participação especial de Maria Bethânia. “Não teria ninguém melhor pra cantar essa música. Bethânia imortalizou essa canção. Ela, carinhosamente, escreveu o texto de apresentação do meu disco Partir (2015) e, desde então, nos aproximamos. Maria Bethânia é uma pessoa que me inspira diariamente. Eu me dei de presente essa participação (risos)”, diz.

Outro convidado do disco é Péricles, que faz dueto com Fabiana em Adeus timidez (parceria de Dona Ivone Lara com Arlindo Cruz). “Eu queria alguém de São Paulo, pelo fato de eu ser daqui também. Péricles tem uma qualidade rara, porque ele é um artista que consegue cantar de tudo e muito bem.”

Estão ainda no repertório canções mais do que atuais, como Liberdade (feita com Délcio Carvalho) – “Liberdade, desfrutei. Conheci quando na minha mocidade/ A ternura de um amor sem falsidade/E confiante sempre na felicidade/E eu cantava, sentia tudo que sonhei”.

“Como eu não iria cantar essa música, ainda mais neste contexto que estamos vivendo? Dona Ivone colocou o amor na frente de tudo; ela e esses outros compositores que estamos interpretando defendem não só a liberdade, mas a delicadeza, acenam para o amor. Não tem ódio nem maldade; só beleza.”

INSTRUMENTOS Ouvir o outro Na faixa que abre o disco, Meu samba é luz, é céu, é mar (Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho), Fabiana Cozza canta praticamente a capella. Ao fundo, só se ouve o reco de Douglas Alonso. E é assim em praticamente todo o disco. Os instrumentos atuam como coadjuvantes e os arranjos são simples, o que ressalta a potência e o timbre da voz da cantora.

A cantora diz que sua intenção era colocar uma lupa sobre as melodias de Dona Ivone Lara. “Queria essa coisa acústica, quase ao pé do ouvido. É um trabalho para valorizar a voz, a melodia e a letra. Na roda de samba, tem tanta coisa acontecendo que muita coisa se perde. Neste momento social em que ninguém ouve ninguém, não só no sentido da audiologia, mas do ponto de vista metafísico e filosófico, eu propus escutar o outro. E a gente precisa de um ouvinte amoroso”, afirma.

Em relação à ausência de diálogo e compreensão, Fabiana Cozza admite ter ficado chocada com a polêmica em que se viu envolvida no ano passado, quando foi anunciada como intérprete de Dona Ivone Lara no musical sobre a sambista. Filha de pai negro e mãe branca e neta de avós negros, aliás, mineiros de Conquista, no Triângulo, Fabiana recebeu duras críticas por ser “clara demais” para o papel.

“Levantar essa questão do colorismo (termo que correlaciona a quantidade de melanina da pele ao preconceito que se sofre) é importante, sim, e algumas pessoas debateram de uma forma muito adulta. Mas algumas coisas me assustaram muito e me deixaram triste. Elegeram um alvo para aniquilar e tentaram destituir essa pessoa do lugar de reconhecimento e de existência dela. Eu me assumir como mulher negra não foi um modismo, foi uma construção. Quiseram simplesmente destituir o lugar e o território do qual o indivíduo se reconhece e se afirma”, diz.

Outro ponto que a incomodou foi o tom raivoso e cheio de ódio de várias pessoas que se manifestaram sobre o assunto. Muitas passaram a atacá-la, mesmo sem saber de quem se tratava. “O que mais tinha era gente que não conhecia a minha trajetória, o meu trabalho e a minha ligação com o samba e Dona Ivone e saiu me criticando. Infelizmente, isso é fruto de um momento em que os ânimos estão muito alterados, onde existe uma polarização e uma radicalização dos discursos. As pessoas estabelecem suas ideias como verdades de uma maneira muito autoritária”, diz.

Em meio à polêmica, Fabiana Cozza decidiu renunciar ao papel, para o qual tinha tido o aval da própria Dona Ivone Lara. “Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e, numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos”, desabafou em uma longa carta. Ela diz ter desistido do projeto acreditando que o episódio poderia gerar uma discussão sobre essa questão do multicolorido.

“Eu esperava que essa história fosse servir para nos unir em torno de uma mesa, cara a cara, para pensarmos juntos espaços de representatividade para todos nós. Mas, quando renunciei, a coisa morreu. Sou uma artista independente, que paga seus discos, que batalha para gravar Dona Ivone Lara, Wilson Moreira. Não estou me fazendo nem me fiz de vítima, mas o alvo foi errado e estamos dando munição ao inimigo. Se não nos unirmos, vamos perder o Brasil, porque estamos virando algozes de nós mesmos. Por isso, a única coisa que posso fazer é responder com arte. Este é o meu lugar.”



A FALA E O SORRISO

Antes mesmo de pensar no nome do disco, Fabiana Cozza recebeu a ideia da capa idealizada pelo artista gráfico Elifas Andreato, que traz uma boca vermelha num fundo escuro. “Ele me mandou e disse que eu não ia gostar. Mas achei que aquela imagem tem um poder de síntese tão grande e acabou se casando tão bem com o nome do projeto, Canto da noite na boca do vento. Ela representa o negro da noite, a negritude e a boca que canta; é o lugar da fala, do sorriso, o vermelho do sangue. Elifas é um gênio”, diz.


Fabiana Cozza
Show do disco Canto da noite na boca do vento; Biscoito Fino (14 faixas; R$ 34,50). Sábado (4), às 21h, no Grande Teatro do Sesc Palladium (Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro. (31) 3270-8100). Ingressos: Plateia 1: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia). Plateia 2: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia) e Plateia 3: R$ 25 (inteira) e R$ 12,50 (meia). À venda na bilheteria do teatro e pelo site www.ingressorapido.com.br.

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