'Não se pode cair no quanto pior melhor. Temos que ajudar o Brasil', diz Caetano Veloso

Depois de apoiar as candidaturas de Ciro Gomes (PDT) e Fernando Haddad (PT), o cantor defende a 'oposição vigilante e responsável' ao governo Jair Bolsonaro

Ângela Faria 21/11/2018 08:00

François Guillot/AFP
"Chico Buarque, o mais leal petista da nossa música popular, nunca usou a Lei Rouanet. Eu próprio nunca a usei diretamente" (foto: François Guillot/AFP)

Depois de apoiar as candidaturas de Ciro Gomes (PDT) e Fernando Haddad (PT) à Presidência da República, Caetano Veloso defende a “oposição vigilante e responsável” ao governo Jair Bolsonaro, em entrevista por e-mail ao Estado de Minas. O cantor e compositor critica a postura do “quanto pior, melhor” e avisa: “Temos que ajudar o Brasil e seus representantes a permitirem o prosseguimento da maturação da democracia entre nós”. Em 16 de dezembro, ele volta a BH para se apresentar com os filhos Moreno, Zeca e Tom no KM de Vantagens Hall.

Ofertório estreou em outubro de 2017, a turnê viajou pelo mundo, volta a BH em 16 de dezembro e segue para os EUA em 2019. Neste pouco mais de um ano, o Brasil mudou de ponta-cabeça com a eleição de Jair Bolsonaro. Essa mudança tão radical teve impacto sobre a “alma” do show? Nas redes sociais, você interpretou uma canção sobre mestre Moa, assassinado em Salvador por um bolsonarista. Ela vai entrar no repertório?

A canção sobre Moa não entrou no repertório. O show segue com a mesma estrutura. Por duas vezes, em lugares diferentes, cantei uma velha canção de Gil, desconhecida, que foi feita sobre Moreno e Preta, quando os dois eram pequenininhos. Às vezes a gente tira uma canção. Mas o roteiro básico é o mesmo desde a estreia. O clima do nosso show tem algo de místico: traz a luz da cultura do Recôncavo como a vi se intensificar na nossa família. Todo o nosso jeito de ser contrasta com o que há de regressivo e hipócrita nas ondas políticas que varrem o mundo. Entre o primeiro e o segundo turnos da eleição, fizemos uma apresentação na Paraíba e voltamos a Fortaleza: nos dois lugares, o show resultava político para as plateias que foram nos ver. Isso ficava explícito na reação à música Gente, mas estava implícito em todos os momentos do resto do espetáculo. Agora, quando cantamos “ame-o e deixe-o”, sentimos o poder da inversão que Gil cunhou sobre o slogan horrendo que não sonhávamos ver e ouvir de novo. Dos versos de O seu amor aos passos de Tom dançando, ao requebrado de Moreno, tudo tem essa luz mística de que falei. A frase “o samba é roda sem medida”, de Um passo à frente, que pra mim é uma das mais bonitas do repertório, me emocionou muito ao ser cantada para aquelas plateias nordestinas naqueles dias.

Todo homem, canção de seu filho Zeca, é a sensação da turnê Ofertório. Quando vocês fizeram o segundo show da turnê em BH, no Breve Festival, em agosto, ele foi ovacionado pelo público, em boa parte formado por jovens. Aqui em Minas, a gente adora falsetes – temos o mestre deles, Milton Nascimento... Qual é a sensação que lhe dá ao cantar Todo homem durante o show? Pra onde esta canção o leva? O rigoroso e exigente Zeca abraçou, definitivamente, a dor e a delícia de ser cantor e compositor?

Todo homem é uma canção especial. Desde a primeira vez em que a ouvi, fiquei tomado por ela. A gente sabia que as pessoas iriam perceber a força que ela tem. Houve lugares – em Roma, por exemplo – em que eu chorei muito enquanto acompanhava Zeca no meu violão. Agora, aqui as plateias jovens aplaudem antes de ele começar a cantar, só ao ouvir os acordes do piano dele. No Breve Festival foi muito emocionante ver a galera reagir às suas frases musicais e poéticas – e cantar junto o refrão. Zeca abraçou sua grandeza espiritual quando compôs essa música. E se mantém à altura. Essa canção já levou minha alma a muitos lugares. Sempre me soa como uma surpresa. O próprio Milton reagiu comovido a ela. Djavan percebeu sua força cedo, antes de termos o show ensaiado.

Na campanha presidencial, você militou ativamente nas redes sociais e palanques. O que significa a vitória de Jair Bolsonaro, futuro presidente da República? Em artigo publicado no New York Times, antes da votação, você afirmou que o país enfrentava a “tempestade de conservadorismo populista”. O que você espera, já que a maioria da população escolheu e apoia Bolsonaro?

Fiz campanha para Ciro Gomes no primeiro turno e pra Haddad no segundo. Não gostei da jogada do PT de manter até quase o fim a candidatura simbólica de Lula e de colocar Haddad numa situação difícil – da qual, aliás, ele saiu engrandecido. Que tenha havido segundo turno e que este tenha chegado a assustar a direita, que era obviamente destinada à vitória, é muito significativo. Houve uma mudança na cena política no espírito das manifestações de 2013, que pediam que se encerrasse o ciclo da “velha política” e foi crescentemente inclinando-se à direita. Agora o presidente do Brasil é Bolsonaro. E eu o respeito como tal. Uma oposição vigilante e responsável deve poder se mover. O que não se pode é cair num “quanto pior, melhor”. Temos que ajudar o Brasil e seus representantes a permitirem o prosseguimento da maturação da democracia entre nós. E a afirmação do nosso estilo peculiar.

Como você avalia a posição de Ciro Gomes na campanha do segundo turno e depois de abertas as urnas? Ele não parece inclinado a apoiar a união das oposições ao governo Bolsonaro. Disse ter sido “miseravelmente traído por Lula e seus asseclas”. A oposição vai se dispersar antes mesmo da posse do presidente eleito?


Gostei quando Ciro, depois do resultado da eleição, disse que não era homem de mágoa, que fazia política. Depois me engajei na campanha de Haddad, coisa que ele não fez. Mas agora acho que a posição dele pode coincidir com o que eu disse antes: armar uma oposição que não seja submissa à hegemonia do PT. Mas nunca me tornei antipetista.

 

Na sua opinião, por que Ciro Gomes, Fernando Haddad e as forças à esquerda foram derrotados nas eleições presidenciais? Onde erraram? Naquele comício carioca, Mano Brown advertiu o PT para o fato de ter se desconectado das bases. “Se não está conseguindo falar a língua do povo, vai perder mesmo”, advertiu o rapper. Você concorda?
No dia mesmo do comício da Lapa, só falei porque Brown tinha dito aquelas coisas. A maioria das pessoas na rua reagia de modo negativo à atitude de Brown. E eu, que achava que o que ele dizia tinha muito a ser aproveitado e que não podia servir apenas como sinal de fracasso do comício, quis falar imediatamente depois dele para que o evento pudesse prosseguir e se enriquecer com o que ele tinha dito. Acho que Brown foi bem Mano Brown naquela hora. Ele não podia não ser diferente da turma de artistas que, no Rio, queriam apenas abrilhantar o comício de Haddad e Manuela. Ele trouxe a notícia de que, na área de onde ele vinha, em São Paulo, as pessoas próximas tinham se desligado do PT. Ou o PT tinha se desligado delas. De fato, no Capão Redondo, Bolsonaro teve mais votos do que Haddad. Os números não escondiam: quanto mais alta a renda e a escolaridade, maior o apoio a Bolsonaro: havia um corte de classe nítido. Mas em áreas da periferia e das favelas de São Paulo e do Rio – assim como em pequenas bolsas no Nordeste –, a adesão a Bolsonaro e a recusa da “velha política” se vez ver.

Tudo indica que o Ministério da Cultura (MinC) será extinto, transformado em uma secretaria do Ministério da Educação. No início do governo Temer, a mesma ideia foi defendida pelo Planalto, mas houve recuo depois da pressão da classe artística. O que vai ocorrer se Bolsonaro levar a extinção adiante? Há possibilidade de um diálogo dos artistas com o presidente eleito? Bolsonaro e seus aliados também têm criticado duramente a Lei Rouanet.
As críticas à Lei Rouanet são tão frequentemente absurdas que nem dá para discutir aqui. Criou-se um mito – no sentido exato do termo – de que artistas mamam nessa lei e por isso votam no PT. A lei é de incentivo fiscal para quem põe dinheiro em produção cultural. Foi criada no governo Collor por Rouanet (Sergio Paulo Rouanet, diplomata e filósofo carioca, ex-secretário nacional de Cultura), que foi chamado pra tentar salvar a área da devastação que o primeiro ministro do MinC de Collor tinha trazido para o cinema e o teatro. Chico Buarque, o mais leal petista da nossa música popular, nunca usou a Lei Rouanet. Eu próprio nunca a usei diretamente – houve um contratante, que, aliás, não me pagou o que me deve, que pedia incentivo para as turnês que produzia. Parece que não vai haver Ministério da Cultura no governo Bolsonaro. Mas a cultura se move. E mesmo a Lei Rouanet pode ser reaproveitada por Paulo Guedes e seus superliberais em outras pastas.

Como você avalia o fato de o juiz Sérgio Moro assumir um ministério no governo Bolsonaro? Ele vai para a pasta da Justiça, diretamente ligada a questões envolvendo censura. Vários artistas temem a volta de limitações à liberdade de expressão. Se for necessário, você topa conversar com o ministro Moro sobre a censura? 
Agora só podemos avaliar sua atuação no cargo. Claro que é impossível não se buscar conexões entre a velocidade com que se tirou Lula, então favorito, do jogo eleitoral, o rendimento impressionante dos casos do apartamento em Guarujá e do sítio em Atibaia, com a elevação de Moro ao status de ministro logo depois da eleição. Qualquer esquerdista, petista ou não, que demonstre desconfiança não merece ser chamado de meramente paranoico. O que não quer dizer que a Lava-jato não trouxe nova visão do perfil das punições penais no Brasil. Antes era impossível imaginar alguém rico ou poderoso na cadeia. Esperemos para ver como Moro se sai no enfrentamento da corrupção e do crime organizado. E claro que, se houver censura de qualquer tipo, estou disposto a conversar com quem quer que seja sobre a questão. Acho que todos os criadores, jornalistas e professores devem reagir a projetos de censura. Espero que Moro não tenha inclinação para esse tipo de coisa. 

OFERTÓRIO
Com Caetano Veloso e os filhos Moreno, Tom e Zeca Veloso. Em 16 de dezembro, às 20h. KM de Vantagens Hall. 

Avenida Nossa Senhora do Carmo, 230, Savassi, (31) 3209-8989. Pista/arquibancada (3º lote): R$ 130 (inteira) e R$ 165 (meia-entrada). Mesas/quatro lugares: R$ 880 (setor 1) e R$ 800 (setor 2). Vendas on-line: ticketforfun.com.br 

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