Artistas do rap nacional, Clara Lima e Pavilhão 9 lançam discos

'Transgressão' e 'Antes durante depois' são crônicas contundentes sobre o colapso social brasileiro

por Ângela Faria 18/08/2017 09:00

Ian Miranda/Divulgação
Clara Lima avisa: 'Sou mulher, negra, lésbica e periférica. Quero viver de música.' (foto: Ian Miranda/Divulgação )

Ela acabou de fazer 18 anos; ele completa 44 nesta sexta-feira, 18. Mas não há conflito de gerações entre a mineira Clara Lima, promessa do rap nacional, e o paulista Rhossi, o veterano líder do grupo Pavilhão 9. Transgressão, EP que a jovem manda hoje para as redes sociais, e Antes durante depois, CD que marca a volta do Pavilhão depois de uma década de ''silêncio fonográfico'', disparam rajadas de rimas sobre este Brasil mergulhado em sofrências, paradinhas, despacitos, safadões e hits-ostentação.


A mineira nem havia nascido quando o Pavilhão 9 estreou, há 25 anos, liderado pelos MCs Rhossi e Doze. Mas Clara é um ''ponto dentro da curva'' na linha evolutiva do rap. ''Rima foda/ Sempre foi o meu ponto G'', canta ela em Pra lembrar, a faixa de abertura de seu EP. ''O rap é compromisso/ já dizia o Sabota/ O tempo é hoje, maninho/ E que se foda a moda'', dispara o Pavilhão.

Crônicas do colapso social brasileiro são a marca registrada tanto de Transgressão quanto de Antes durante depois. Rhossi diz que as letras vêm sendo feitas há três anos, fiéis à postura incisiva que o Pavilhão sempre adotou. ''O rap atual tem falado muito de diversão, de coisas mais leves, de ostentação. Precisamos de um contraponto, de música para fazer pensar'', diz. ''O nosso país não é tão divertido assim. Falta reivindicar'', resume.

Embora enfatize que não lhe cabe ditar regras para os colegas – ''não faço nem melhor nem pior do que ninguém'' –, Rhossi reitera que seu hip-hop jamais abrirá mão de ''pôr o dedo na ferida''. Mesmo nos Estados Unidos, onde celebridades do rap celebram carrões, grana e misoginia, há artistas contundentes como Kendrick Lamar, lembra ele. Clara Lima, com seu Transgressão, mantém a conexão do hip-hop com seu berço, a periferia. Conta ter se inspirado em sua quebrada – ela mora no Bairro Ribeiro de Abreu, na Zona Norte de BH – para falar de violência, racismo, da sedutora vida do crime e de machismo.

''Passo a visão das coisas da minha comunidade, tá ligada?. A parada é resgatar o que não está sendo dito, falar da favela'', afirma. Tudo isso, reforça, sob a perspectiva feminina. Fã de Karol Conka e Flora Mattos, a mineira exibe versos originais, com seu estilo ''vida loka'' feminista. Desde adolescente, desafia o proverbial machismo do rap, sobretudo das batalhas de MCs, onde estreou aos 14. ''Sou mulher, negra, lésbica e periférica. Quero viver de música'', avisa. Vai à luta – e não só no hip-hop. Este ano, estrelou o curta Nada, de Gabriel Martins, exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, na França.

 

Roberto Salgado/Divulgação
Pavilhão 9 defende o rap político, comprometido com a realidade social brasileira. (foto: Roberto Salgado/Divulgação)

PIONEIRISMO Pavilhão 9 e Clarinha são pioneiros. A banda paulistana foi o primeiro grupo de rap a se apresentar no Rock in Rio, em 2001. O hip-hop mesclado com metal e guitarras pesadas conquistou o público, com direito à participação especial de Andreas Kisser e Igor Cavalera, então companheiros de Sepultura. Por sua vez, a compositora foi a primeira mulher a representar Minas Gerais na final do Duelo de MCs, em 2015. Não venceu, mas se destacou no festão realizado debaixo do Viaduto Santa Tereza.

De lá pra cá, tudo mudou para o Pavilhão e para Clara. O grupo paulistano tem nova formação: aos fundadores Rhossi e Doze se juntaram o baterista Leco Canali (ex-Tolerância Zero), o baixista Heitor Gomes (ex-Charlie Brown Jr) e o guitarrista Rafael Bombeck. Em 2012, eles tocaram no Lollapalooza. A decisão da retomada foi amadurecida por três anos. ''Nossa fanpage já passou de 16 mil pessoas, e elas queriam a nossa volta'', explica Rhossi. O sétimo CD do Pavilhão, enfatiza, está sintonizado aos novos tempos. Traz faixas curtas, como exige a era do single e do streaming, além de sonoridade contemporânea, com pegada hardcore e ''trap rock''. Há conexões internacionais: Isto não para é versão de Esto no para, do rapper espanhol Kase.O.

''Nos anos 1990, a gente, Racionais, Chico Science, Charlie Brown Jr., Planet Hemp e outros grupos derrubamos pedreira. Asfaltamos a estrada para o pessoal de hoje. A nova geração canta o que ela vive, não há tanta reivindicação como antes'', diz Rhossi. Ele destaca o trabalho de Criolo e afirma que Emicida deu ''o segundo passo'' nessa jornada, conferindo ''novos ares'' ao hip-hop nacional.

Do alto de seus 18 anos, Clara diz que seu trabalho é fortemente influenciado pelo veterano Racionais. O último disco dos paulistanos, Cores e valores (2014), foi uma fonte de inspiração. ''É totalmente atual, original. Nossa essência é a mesma'', comenta. Transgressão é ''totalmente trap'', diz ela, referindo-se ao estilo de rap surgido nos EUA, marcado por batidas eletrônicas e letras contundentes, também presente em Cores e valores.

Cria do Duelo de MCs, em que rappers se desafiam por meio do improviso de versos e rimas, o freestyle, agora ela experimenta nova fase. ''O Duelo abriu todas as portas para mim, absorvi tudo de bom dali'', diz, explicando que pretende investir em seu lado compositora. Em seu disco, lançado pelo selo paulista Ceia, Clara reúne talentos de BH: os produtores CoyoteBeatz e Fernal, o rapper Djonga e Fabrício FBC, entre outros. O rap, aliás, está no sangue. Chris MC, irmão dela, também prepara um disco. Os dois contam com o apoio da mãe, dona Heloísa, e dos professores. A garota cursa o 3º ano do ensino médio na Escola Estadual Margarida de Melo Prado, no Bairro Monte Azul.

BRASIL
Mesmo se sentindo ''de mãos atadas'' diante de um Brasil ''sinceramente frustrante, comandado por pessoas irresponsáveis com a palavra, o dinheiro e a vida do povo'', Clarinha aconselha o jovem a acreditar nos próprios sonhos. Sobretudo no caso das meninas que desejam ingressar no machista universo do hip-hop. ''Alegrias reais fortificam as alianças'', canta ela em seu EP.

Em seu disco, Rhossi e banda desancam a impunidade (''Com dinheiro se compra se prende se solta''), denunciam a sordidez do jogo político (''Desde 90 isso é loucura/ O povo é guerreiro e tem jogo de cintura/ Cria armadura contra a ditadura'') e mandam seu papo reto para a periferia (''Que funk é esse/ Contaminando a favela/ Se tem interesse/ Leia Nelson Mandela'').

Vinte e seis anos separam o Pavilhão de Clara, mas há certa sincronicidade entre a mineira e os paulistas. Ambos vão fazer shows de estreia dos novos trabalhos em Porto Alegre – ela, em 24 de agosto; eles, em 19 de outubro. Nome do bar? Só podia ser Opinião...

 

Abaixo, confira Transgressão e Antes durante depois

 

 

TRANSGRESSÃO
. De Clara Lima
. Selo Ceia
. Seis faixas
. Produção: CoyoteBeatz e Fernal
. Disponível em todas as plataformas digitais

ANTES DURANTE DEPOIS
. De Pavilhão 9
. Selo Deck
. Produção: Daniel Krotoszynski e Pavilhão 9
. Dez faixas
. R$ 27,90

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