Flávio Renegado implode fronteiras entre rap e canção em seu terceiro disco

Com rimas certeiras, ele vai do blues e do samba ao funk carioca para falar do Brasil chapa quente

por Ângela Faria 19/07/2016 08:00
Daryan Dornelles/Divulgação
Flávio Renegado avisa: "Não tem que ter fronteira. Acabou a ditadura" (foto: Daryan Dornelles/Divulgação)

Há quem diga: rap não é música. Outono selvagem, terceiro disco de Flávio Renegado, vem comprovar que não é bem assim. Aos 34 anos, o MC e compositor derruba – com gosto – as fronteiras entre a canção e as batidas do gênero conhecido como ritmo e poesia. O caminho iniciado nos álbuns Do Oiapoque a Nova York (2008) e Minha tribo é o mundo (2011) não apenas se consolida, mas inspira a “repaginada” (palavras de Flávio) na vida desse belo-horizontino nascido na comunidade humilde do Alto Vera Cruz, na Região Leste da capital.

“Mudei a minha forma de compor”, diz Renegado, linha de frente do hip-hop mineiro. A chegada da maturidade, o mergulho profundo em questões pessoais e uma década de carreira abriram novo ciclo. Diz ele que o mundo complexo em que vivemos exige muito mais do que encarar a vida como ringue maniqueísta dividido entre o mal contra o bem, coxinhas versus petralhas.

“Outono selvagem tem outra carga energética, é diferente da linha de meus outros trabalhos”, observa ele. Com efeito. Radicaliza-se aqui o diálogo (para não dizer a interação) do rap com a canção. Flávio investe no apuro melódico e nas harmonias, compartilhando esse universo sonoro com sua banda. Não se trata de abandonar o canto falado (DNA do rap) e muito menos a oralidade herdada da cultura africana. “Sou rapper”, enfatiza ele. Mas um rapper que vem cantando para valer. “Estou sofisticando”, resume.

Flávio divide melodias e letras com Chico Amaral e Makely Ka, nomes de ponta da cena de BH. Estuda violão e burila a voz em aulas com a fonoaudióloga Janaína Pimenta, a mesma de Ivete Sangalo. Nos dois primeiros discos, mesclou rap, samba, ritmos latinos e caribenhos com batidas contemporâneas. Em Outono selvagem, ele rima – e canta – blues, rock, reggae, soul. Também flerta com o funk carioca. A banda reúne Aloísio Horta (baixo), Marcelinho Guerra (guitarra e teclados), Rodrigo Carioca (bateria), Cris Caldas (teclados), Daniel Guedes (percussão) e o aclamado Marcos Suzano (percussão), além dos DJs Spider e Nato. Com trabalhos anteriores produzidos pelos respeitados Daniel Ganjaman e Plínio Profeta, Renegado agora assume a direção musical do próprio disco. A turnê começa pelo Nordeste e chega em setembro a BH.

DITADURA Assim como Criolo, Emicida e Rael – destaques do hip-hop nacional –, o mineiro implode paradigmas, a despeito de alguns manos execrarem tal “heresia”, acusando quem opta por esse caminho de sucumbir aos apelos comerciais. “Não tem que ter fronteira. Acabou a ditadura”, reage Flávio, fã do Clube da Esquina, amigo de Toninho Horta e defensor de um rap legitimamente brasileiro. Ele já cantou com Anitta, Paula Toller, Jota Quest, Bebel Gilberto e Mart’nália. Rimou em abertura de novelas da Globo, diz que o pop o ensinou a ser livre. O novo disco tem participações de Alexandre Carlo (Natiruts), Samuel Rosa (Skank) e Sérgio Pererê.

Cronista deste Brasil chapa quente, o mineiro denuncia o racismo – preconceito agora disfarçado, pois não pega bem ser politicamente incorreto. “Sou preto rebelado/ que não aceitou ser chamado de ladrão/ Hoje blackstar/ Sonho de consumo da filha do patrão”, ironiza na faixa de abertura. No disco, Flávio recorre ao pecado e à virtude como metáforas das hipocrisias de nosso dia a dia. Engajado, critica o impeachment da presidente Dilma Rousseff, defende o “Fora, Temer” – inclusive, vestiu a camisa com tal slogan no palco da Virada Cultural de BH –, apresenta pocket shows em acampamentos do MST. “O governo provisório do Brasil está suprimindo importantes avanços sociais”, reclama. Questionado sobre a necessidade de autocrítica do PT, responde: “Não sou petista, sou de esquerda”. E defende menos vaidade política e mais foco em projetos voltados para o povo.

Faixas de Outono selvagem são crônicas deste Brasil mergulhado em ódio e intolerância. Pão e circo – com sample de Geni e o Zepelim, autorizado pessoalmente por Chico Buarque – dispara: “Domingo à tarde/ invadiremos sua tela/ vamos exibir a revolução das panelas./ Vamos tomar de volta/ os assentos do avião/ Os pobres não voarão/ vão voltar de busão/ Democracia voltará a ser direito de fachada/ diploma/ não vai para a filha da empregada”.

“A gente não poderia passar batido pelo que o país está vivendo. Rap é isso: a música da verdade”, diz Renegado. No meio de panelaços e do “pega pra capar”, há também espaço para as coisas do coração. Outono selvagem (referência a maio, mês de nascimento dele) tem faixas românticas. Mas não espere amores idealizados nem musas recatadas e do lar. Flávio canta para a garota empoderada do século 21, a “lacradora” que dá nó na cabeça dos rapazes ainda machistas.

No blues-rap Corda bamba, faixa dividida por Flávio com Joana Rochael, um casal se vê refém da “egotrip básica” que contamina os relacionamentos contemporâneos. Na bem-humorada Maldita, parceria com Marco Mattoli e Roberta Gomes, o rapper e o sambista Diogo Nogueira se rendem à musa de “vermelho batom, força e axé”, cheia de autoestima: “A minha virtude/ É gostar demais do seu pecado/ Achar tudo certo/ No seu jeito errado/ Te entender como és”.

GOSTOZIM “Minha relação com a mulher sempre foi de respeito. Minha família sou eu, minha mãe e minha irmã”, conta Flávio. Empoderamento é pouco para a musa de Luxo só, parceria dele com Jana Lourenço, sua vizinha do Alto Vera Cruz. Nesse funk carioca à mineira – civilizado, mas irresistivelmente safado e cheio de suingue –, ele canta: “Acabou o amor/ Agora é só luxúria/ no chão/ na pia/ em casa ou na rua”, enquanto ela diz: “Ai/ tá gostozim”. Não será surpresa se a faixa bombar nas redes e nas pistas. Funk e rap, diz o compositor, são expressões legítimas do povo brasileiro e devem ser respeitados como tal.

“A gente não quer só comida”, avisa Flávio em outra faixa. Comprometido com sua comunidade, ele promove, a partir de hoje, o 1º Festival de Inverno de Vilas e Favelas de BH, que até dia 27 levará shows, oficinas, cinema, teatro e artistas voluntários ao Alto Vera Cruz (veja programação nesta página). Sua família se mudou de lá para a Região Noroeste da cidade e a antiga casa virou sede da Associação Arebeldia Cultural, criada por ele e a produtora Danusa Carvalho.

“A beleza é uma condição urgente”, decretam Renegado e Chico Amaral em Sobre peixes, flores e você. É nesse clima que o rapper convida todo mundo a subir o morro e participar da festa. Bora lá?

FESTIVAL DE INVERNO DE VILAS E FAVELAS


>> HOJE
15h: Cortejo com Tambor Mineiro, Maurício Tizumba e Titane. E. M. Israel Pinheiro
16h: Oficina audiovisual (Marcão Pesada). E. E. Prado Lopes
16h: Grafitagem (Basquiat Graffiti e Negro F). Oficina de brinquedo eletrônico (Fred Paulino). Associação Arebeldia

>> AMANHÃ
10h: Oficina de brincadeiras de rua (Luiza Oliveira). Associação Arebeldia
14h: Oficina de alimentação saudável (Renata Moreira). Associação Arebeldia
18h: Show de Max Lisboa. Associação Arebeldia
19h: Lançamento do Bikeira Cine Clube. Filme Batismo de sangue, de Helvécio Ratton. Associação Arebeldia

>> QUINTA
10h: Um amor de parque (Gabriella Lapouble).
Praça Flamengo
14h: Filme O casamento da ararinha azul, de Marcelo Branco. Ciame Flamengo
18h: Show de Marina Machado. Associação Arebeldia

>> SEXTA
14h: Oficina de empreendedorismo juvenil (Patrícia Lisboa). Associação Arebeldia
16h: Oficina de composição (Chico Amaral). Associação Arebeldia
18h: Show de Meninas de Sinhá. Praça Flamengo

Programação completa: www.arebeldia.org.br

OUTONO SELVAGEM
De Flávio Renegado
Som Livre
R$ 22,90

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