Conheça o maestro Ernani Aguiar, uma referência no cenário erudito do Brasil

Ernani Aguiar critica a "preguiça" dos estudantes, a falta de formação dos compositores e o viés brasileiro de desprezar a criação nacional em favor da estrangeira

por Walter Sebastião 05/07/2016 08:34
RAFAEL MOTTA/DIVULGAÇÃO
Nascido no Rio de Janeiro o compositor e maestro se diz natural de Ouro Preto (foto: RAFAEL MOTTA/DIVULGAÇÃO)
Ernani Aguiar é um nome pouco conhecido do público, mas trata-se de autor celebrado como uma das mais importantes personalidades da música erudita no Brasil. Até por ter perfil raro: compositor, maestro, professor, musicólogo – é um dos maiores especialistas na obra de José Maurício Nunes Garcia (1767-1830). Composições dele já ganharam dezenas de gravações. E a discografia continua em expansão. Quatro movimentos nº 3, considerada sua obra mais conhecida e a peça de corda mais gravada no Brasil, está no disco Latinidade (2016), da Orquestra Ouro Preto. Hugo Pilger Interpreta Ernani Aguiar (2016) traz peças para violoncelo. A Orquestra Sinfônica do Rio de Janeiro gravou obras suas em 2015.

O maestro e compositor vê tudo com satisfação. “É sinal de que minha música foi aceita.”Nem se incomoda de suas composições figurarem em discos que reúnem diversos autores. “É bom, porque não chateia o ouvinte”, brinca. Em sua mesa de trabalho há vários trabalhos novos. Aguiar nasceu no Rio de Janeiro, mas sempre pede que se diga que ele é natural de Ouro Preto (MG). Para esse pedido, tem justificativa na ponta da língua: “ O lugar onde a gente nasce não tem a menor importância. O importante é o lugar que a agente ama, onde estamos bem. Aí está a nossa pátria. Chegar a Ouro Preto é como chegar em casa. É monumento de arte, história, cultura e rebeldia. Amo mais Minas Gerais do que o Brasil”, afirma.

Filho de pais que foram professores de música, o maestro até valoriza o ambiente em que cresceu e em que teve apoio para ser músico, mesmo conhecendo-se as dificuldades do ofício. Mas frisa que convivência familiar com a música, sem estudo, de pouco adianta. O estudo formal, na opinião dele, é essencial também para quem quer ser compositor. “Muitos dizem que são compositores, mas não são. Não estudaram, não conhecem a técnica. São melodistas”, afirma, referindo-se a compositores populares, Chico Buarque inclusive. “Tom Jobim é compositor, sabia música”, diz. “Mas prefiro as melodias de Chico ao que faz a maioria dos compositores da Bienal de Música Contemporânea”, acrescenta, alfinetando a vanguarda musical.

“Os ismos do século 20 – atonalismo, dodecafonismo, serialismo – são como o McDonald’s: fizeram a música ser igual em todo o mundo”, critica. Ernani Aguiar reconhece que é generalização injusta: “Apesar de tudo, todos os movimentos têm bons compositores.” E aponta o motivo da crítica à experimentação musical: ele repudia inovações que “viram clichês” e, especialmente, patrulhas estéticas. Polêmicas que são só o prólogo para o músico  falar de seu trabalho autoral. “Todas as minhas composições são baseadas na música popular, na música que o povo gosta de ouvir”, diz. O segundo movimento de Concertina para violino, violoncelo e orquestra, exemplifica, é uma seresta “como as de Ouro Preto”.

Ernani Aguiar, como ele mesmo conta, é católico tridentino. A conversão foi há 25 anos, em São João del-Rei, depois de estudo da filosofia religiosa e de chegar à conclusão de que era o pensamento que “mais batia” com a cabeça dele. “O pai da música, para mim, é Bach. E ele compôs para Deus”, afirma, reverente. “Não dou aulas de composição, porque me sinto incapaz. Ensinar a compor é como ensinar a criar. E criar é ato divino”, argumenta. O compositor tem inclusive extensa produção sacra, incluindo quatro missas, a primeira delas escrita quando nem era católico. Algumas valeram escândalo. “Cantos sacros para Orixás fizeram os crentes querer me jogar na fogueira. Estou obrando para eles”, afirma.

Os trabalhos de viés religioso de Aguiar convivem com outros, profanos, como 11 peças com textos do poeta Gregório de Matos (1636-1696), escritor sabidamente desbocado e com vários escritos que celebram o erotismo. “A poesia de Gregório já vem com melodia. A farra dele é também um pouco a minha cabeça”, afirma. “Sou boêmio aposentado mas continuo boêmio. Trabalho na Lapa”, brinca, citando o bairro carioca em que está situada a Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde ele dá aulas de Regência Orquestral. Ao saudar mestre com quem estudou composição - César Guerra-Peixe (1914-1994) – valoriza não só o conhecimento do professor, mas também o companheiro de noitadas, que mostrou a ele que boêmia é importante para o músico.

INSPIRAÇÃO DIVINA “Faço música para quem gosta de tocar e para quem está ouvindo gostar. Não faço música para intelectuais. Gosto de melodias compreensíveis e ritmos que o ouvido aceita rapidamente. E, no trabalho orquestral, da pesquisa de timbre. Minhas composições vão saindo naturalmente e encontrando a técnica. Só técnica ou só inspiração não resolve. Sendo católico, apesar de politicamente anarquista, com permissão dos meus amigos ateus, afirmo que minha inspiração vem do divino Espírito Santo”, diz.

Aguiar diz ter “orgulho de ter quatro ex-alunos que foram maestros no Theatro Municipal do Rio de Janeiro”, incluindo o afilhado Rodrigo Toffolo. “Um bom regente, para mim, é aquele que consegue transmitir o máximo possível das intenções do compositor. Tenho fama de professor carrasco e sou mesmo. Foi assim que aprendi música. Meus professores foram exigentes comigo e dei certo. Estudantes de música têm que ouvir de tudo e hoje isso é possível. Mas não ouvem, são uns preguiçosos. Quem quer ser um músico verdadeiro tem de estudar a vida inteira, tomar chopp na esquina e namorar. Músico não pode viver isolado”, afirma.

Na opinião do músico,  as vanguardas do século 20 “geraram uma música para intelectual, que afastou os ouvintes da música clássica e das salas de concerto”. Ele conta que, “quando tinha 20 anos, dizia que John Cage era um messias, no sentido judaico, um líder”. Depois de estudar e se dedicar profissionalmente à música, chegou à conclusão, “aos 40 anos, de que John Cage é um charlatão”. E explica por que: “O que ele fez, inclusive, já tinha sido precedido por Erwin Schulhoff. Prefiro me definir com um compositor nacional e não como nacionalista. Que graça tem escrever música em estilo norte-americano, dinamarquês?”.

Sobre o nacionalismo, ele observa que “infelizmente, o brasileiro tem vergonha de ser brasileiro, tem preconceito de cor. Lê bobagens estrangeiras e não lê Lima Barreto, Machado de Assis, mal lê Jorge Amado. O maestro brasileiro prefere reger um réquiem de Mozart ao do padre José Maurício. Conheço o de Mozart de cor, mas prefiro gravar o de José Maurício. É música da alta qualidade e não curiosidade da América colonial”. Ele afirma ser “campeão de primeiras audições de autores do período colonial”. E preconiza: “Precisamos ouvir mais o que eles fizeram. Por achar que os compositores daquele período eram mulatos, não ouvimos”.

CARREIRA

Ernani Aguiar estudou no Brasil com Paulina d’Ambrosio, a violonista de Villa-Lobos, e Santino Parpinelli ( viola). Em Belo Horizonte, estudou regência com Carlos Alberto Pinto Fonseca. Aperfeiçoou-se estudando música de câmara, harmonia, canto, com estudos na Itália, Argentina, Alemanha. Desde 1987, é professor de regência da Escola de Música da UFRJ e do Instituto Villa-Lobos da Universidade do Rio de Janeiro. Foi eleito em 1993 para a Academia Brasileira de Música, onde ocupa a Cadeira número 4, cujo patrono é o compositor Lobo de Mesquita.Ganhou o prêmio de Melhor CD de Música Erudita (da Associação Paulista de Críticos de Arte, 1998, e do Prêmio Sharp, 1999) regendo a ópera Colombo, de Carlos Gomes, com coral e Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFF-RJ. A dedicação à obra de Carlos Gomes valeu ao músico o título de Cidadão Honorário de Campinas (SP). Pela atividade de pesquisador e professor obteve o título de Cidadão Honorário de Ouro Preto e de Cidadão Benemérito do Rio de Janeiro.

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