Disco de inéditas de Cesaria Evora é lançado no Brasil

Produtor que a lançou no mercado internacional diz que cantora tinha opiniões firmes e temperamento generoso

por Eduardo Tristão Girão 26/05/2015 08:00

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Joe Wuerfel/Divulgação
(foto: Joe Wuerfel/Divulgação)
Na década de 1980, falava-se nas gravadoras que ela já era uma senhora de idade e gorda, que seria impossível assinar qualquer contrato. A senhora em questão é a cantora cabo-verdiana Cesaria Evora, que morreu em dezembro de 2011, uma das grandes vozes femininas da atualidade, responsável por revelar ao mundo a música de seu minúsculo país, na costa oeste africana.

Quem conta a história de Cesaria é o conterrâneo José da Silva, que a descobriu cantando num restaurante em Lisboa e produziu toda a sua discografia, à qual se junta Mãe carinhosa (Selo Sesc), primeiro álbum póstumo de inéditas, recém-lançado no Brasil.

“Todo mundo negava, dizia-se que ela não estava dentro dos critérios. Levei cinco anos para conseguir o primeiro show dela num festival francês. Antes, eram só apresentações para a comunidade cabo-verdiana, que está espalhada pela Europa”, lembra Silva. Nessa estreia para um público mais amplo, ele diz, estavam muitos jornalistas que, emocionados, começaram a publicar artigos sobre a cantora já no dia seguinte. Àquela altura, Cesaria já havia lançado dois discos, 'La diva aux pieds nus' (1988) e 'Distino di Belita' (1990).

A partir daí, o produtor musical passou a pautar-se pela reação do público europeu para dirigir a carreira da cantora. “Passei a entender do que gostavam mais, que são as canções mais lentas, mais emotivas. Então, me baseei nisso para gravar o primeiro disco para o público internacional, 'Mar azul', lançado em 1991. Os dois anteriores foram vendidos, basicamente, para a comunidade cabo-verdiana”, conta. Com o dinheiro que entrou, gravaram no ano seguinte o álbum 'Miss perfumado', que tem o maior sucesso de Cesaria, 'Sodade'.

A produção mais ambiciosa e a vendagem (250 mil cópias) chamaram a atenção das grandes gravadoras. “Começaram a me ligar e acabamos assinando contrato com a BMG, a única que aceitou o formato de licenciamento, pois não abri mão de eu mesmo fazer a produção. Não poria Cesaria na mão de um diretor artístico de uma major (grande gravadora) que não teria a sensibilidade que tivemos com ela. Trabalhávamos como uma família. Era tudo sem pressão e quando ela queria, sem objetivos marcados. Foi assim até o final”, afirma Silva.

PACIÊNCIA Foram 27 anos de trabalho juntos. Ele garante que era fácil trabalhar com ela, embora reconheça nunca ter testado sua paciência, pois sempre cumpriu o que lhe prometia. “Quando ficava chateada, não dava para trabalhar com ela. Quando dizia não, não voltava atrás e não adiantava insistir. Num programa de TV na Espanha, por exemplo, fomos maltratados pela emissora e, na hora de gravar, ela simplesmente foi embora sem cantar. Deu um problema enorme e ela ainda ganhou com isso, pois no dia seguinte os jornais repercutiram o fato”, diz.

Silva acredita que a bondade, ao lado da rebeldia, eram as marcas principais da identidade da cantora. Ela não se interessava por política, nunca quis morar com os homens com quem se relacionou e dava grande valor à própria liberdade. Além disso, gostava de ouro, embora fosse capaz de presentear com um anel seu, por exemplo, uma funcionária de hotel por quem tivesse simpatia imediata. A casa dela em Mindelo, Cabo Verde, revela seu produtor, mais parecia sala de espera de médico, sempre cheia de pessoas querendo resolver todo tipo de problema. Encomenda de remédios do exterior, visto, dinheiro, material de construção.

A propósito, ele quer fazer da residência dela um centro cultural, dando continuidade ao desejo da própria artista, que, cinco anos antes de morrer, criou uma associação e iniciou projeto de ensino musical para jovens da cidade. O imóvel é grande e abrigaria também um memorial dedicado à cantora. Para tanto, será preciso comprá-lo do único filho de Cesaria (o outro morreu há cerca de um ano), que mora em Paris e não seguiu carreira musical. A cantora também deixou dois netos.

 

Todo mundo negava, dizia-se que ela não estava dentro dos critérios. Levei cinco anos para conseguir o primeiro show dela num festival francês. Antes, eram só apresentações para a comunidade cabo-verdiana, que está espalhada pela Europa 

José da Silva, produtor musical
 
 

Álbum terá show de lançamento

 

Com 13 faixas, 'Mãe carinhosa' não deve ser visto como mais uma compilação na discografia de Cesaria. Pelo caráter póstumo e por conter exclusivamente inéditas, é relíquia. É fato que as canções não têm o mesmo peso de algumas das melhores gravações que fez (como 'Sodade', 'Sabine largam’', 'Miss perfumado', 'Vida tem um só vida' e 'Mar azul'), mas não deixa de ser interessante ouvir em perspectiva aquilo que ficou de fora dos seus últimos trabalhos. São músicas registradas entre 1997 e 2003, em Cabo Verde e na França.

A seleção foi feita pelo próprio José da Silva. “A cada vez que gravávamos, ultrapassávamos o número de músicas necessárias e sempre guardávamos o que sobrava. Os critérios para escolher o que entrou nesse disco foram os mesmos de sempre, equilibrar mornas (ritmo mais arrastado) e coladeras (variação mais agitada) e também autores”, justifica. Cesaria sempre gostou de gravar vários autores e sentia que essa era a melhor maneira de ajudá-los.

As três bandas que acompanharam a cantora ao longo de sua carreira estão representadas no repertório de 'Mãe carinhosa'. Ela não fazia questão de que os músicos fossem cabo-verdianos, mas, durante todo esse tempo, tocou com apenas dois estrangeiros, um violinista cubano e um trompetista francês. A formação que durou mais tempo – 13 anos – foi a última e deu origem a projeto criado ano passado por Silva para manter vivo o repertório cantado pela artista, chamado Cesaria Evora Orquestra.

“Convidamos as cantoras cabo-verdianas Jennifer Soledad, Nancy Vieira e Lucibela Santos para interpretar essas músicas com a mesma banda de antes e já tocamos na Europa e no México. Em breve vamos para os Estados Unidos e estamos negociando quatro datas em julho com o Sesc, em São Paulo. A ideia é trazer o ambiente da Cesaria às pessoas, com os mesmos arranjos”, conta ele, que assina a produção do espetáculo. A duração é de cerca de uma hora e meia.

Na gaveta de onde Silva retirou as músicas de 'Mãe carinhosa' ainda ficaram 14 músicas que Cesaria nunca chegou a gravar – as únicas que restam, aliás. Elas serão reunidas em mais um disco, a ser lançado em, no máximo, dois anos. O produtor diz possuir muito material da cantora em vídeo, mas que não tem projetos para editá-lo. “Existem dois documentários sobre ela, não estamos com pressa”, afirma. No momento, são analisadas propostas de um musical e um filme sobre a artista.

 
Fã de Ângela Maria

Cesaria veio diversas vezes ao Brasil e sempre se sentia contente aqui, relata seu produtor, José da Silva. “Gostava muito da música e da comida, inclusive da feijoada”, diz. Tinha um grande amigo aqui, o ex-cônsul geral honorário de Cabo Verde, Agnaldo Rocha. Adorou ter conhecido Caetano Veloso e Marisa Monte, entretanto, sua admiração maior era pela cantora Ângela Maria. “Quando Cesaria foi encontrá-la pela primeira vez, tremia”, lembra Silva.

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