Paco de Lucía ajudou a modernizar o flamenco; músico deixa vasto legado

O artista faleceu nesta semana. Ele estava tocando violão na praia no momento em que se sentiu mal e acabou morrendo antes de chegar ao hospital

por Eduardo Tristão Girão 27/02/2014 07:00

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Marko Djurica/Reuters
(foto: Marko Djurica/Reuters)
Para alçar Paco de Lucía à condição de gênio, não foi preciso esperar até a manhã de ontem, quando a notícia de sua morte chegou ao Brasil. Maior violonista flamenco da história e um dos grandes de todos os tempos, o espanhol impressiona o mundo há pelo menos 40 anos e seguiu deixando o público boquiaberto até o fim. Bebeu na fonte da música típica da Andaluzia, incorporou sua essência e soube como poucos mesclá-la a outros estilos, o que o ajudou a viajar o mundo e fazer parcerias memoráveis, sempre marcadas pelo toque inconfundível do seu violão. Mesmo que você tenha apenas uma vaga ideia do que é o flamenco, pelo menos metade disso se deve a ele.

Paco tinha 66 anos e estava em Cancún, no México. Vítima de um ataque cardíaco, ele se encontrava na praia, acompanhado de familiares. Em comunicado oficial, a família do músico afirmou que “não há consolo nem para os que o conheciam, nem para os que o amavam, sem conhecê-lo. Ele viveu como quis e morreu brincando com seus filhos, ao lado do mar”. A morte do artista foi anunciada pela Prefeitura de Algeciras, sua cidade natal, no Sul da Espanha, que decretou três dias de luto pela perda do “maior violonista de todos os tempos”.

O artista viveu por cinco anos no México e voltou à Espanha em 2003 (morava em Maiorca), época em que começou a diminuir o ritmo de shows, já cansado por ter de passar sempre mais da metade de cada ano excursionando pelo mundo. A partir daí, suas apresentações foram concentradas na Europa, além de ter escasseado. Esteve no Brasil várias vezes, fez shows em três ocasiões diferentes em Belo Horizonte e tocou pela última vez no país em novembro, quando passou pelo Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Ele esteve longe dos palcos nacionais por 16 anos.

No momento, preparava-se  para lançar álbum de músicas inéditas, o que não fazia desde 2004, com 'Cositas buenas', compilação de bulerias, rumbas e tangos gravada com o cantor e compositor conterrâneo Javier Limón. O novo trabalho já está completamente gravado e tem no repertório arranjos feitos recentemente por ele para temas da Andaluzia que ele escutou na infância. Em 2003, o artista lançou 'Integral', caixa com 26 CDs remasterizados, biografia, guia para a audição da sua obra e um disco com faixas raras, incluindo músicas que gravou em sua estreia fonográfica solo, aos 16 anos.

Mãe portuguesa

Filho de um cantor de flamenco pouco conhecido, António Sánchez, Paco nasceu Francisco Sánchez Gómez e adotou o “de Lucía” como sobrenome para homenagear a mãe, a portuguesa Lucia Gomes. Sua vida musical começou cedo: aos 12 anos, formou o dueto Los Chiquitos de Algeciras com seu irmão Pepe nos vocais. O artista gostava de lembrar que devia a carreira ao pai, que o obrigou a tocar violão e cobrava dele que estudasse o instrumento por 10 a 12 horas por dia. Aos 15 anos, ele já colaborava em gravações de discos em Madri e não tardou a assinar contrato para gravar seu primeiro álbum.

Nos anos 1960, começou a excursionar pela Europa com o grupo Festival Flamenco Gitano e numa das viagens conheceu Camarón de la Isla, nome maior do canto flamenco. Trabalharam juntos por quase 10 anos e lançaram vários discos significativos. Na década seguinte, já um mestre do violão espanhol, Paco começou a experimentar outras possibilidades em seus discos, com o jazz entre suas influências. Além disso, descobriu que a adição de outros instrumentos nas gravações ajudava consideravelmente a popularizar seu trabalho.

Foi assim com Entre dos aguas, uma de suas mais conhecidas composições, que dá nome a seu disco de 1975: o violonista esbanja sensibilidade, domínio técnico e elegância numa rumba irresistível, embalada por bongô e baixo elétrico. Nessa mesma época, seu disco Fuente y caudal tornou-se recordista de vendas na Espanha e Paco, o primeiro artista de flamenco a se apresentar no Teatro Real, na capital espanhola. Tocou com astros internacionais do violão e da guitarra, sendo a colaboração com Al Di Meola e John McLaughlin, batizada de The Guitar Trio, a mais bem-sucedida nesse âmbito.

Recebeu o Prêmio Príncipe das Astúrias das Artes, reconhecimento do governo espanhol à sua contribuição para a cultura, foi considerado doutor honoris causa pela Universidade de Cádiz e pelo Berklee College of Music de Boston, teve seu disco Cositas buenas eleito o melhor álbum flamenco de 2004 no Grammy Latino e, no ano seguinte, indicado como produtor do ano pelo disco La tana's tu, ven a mi na mesma premiação. Cidadão do mundo e interessado nas muitas conexões que poderia fazer, o violonista jamais se afastou das raízes musicais flamencas, deixando sua marca em todos os projetos de que participou. Como gostava de dizer, ele não devia obediência à tradição, mas respeito.


Paco na MPB

A ligação de Paco de Lucía com o Brasil vai além do seu conhecido solo em Oceano, de Djavan. O violonista também emprestou seu talento a Fagner, gravando em duas músicas do disco 'Homenagem a Picasso' (1982); gravou 'Frevo rasgado', de Egberto Gismonti, no disco 'Friday night in San Francisco' (com o The Guitar Trio, em 1981); e ensaiou gravar disco com o também violonista Raphael Rabello, de quem era admirador e com quem sempre se encontrava quando vinha ao Brasil.


Amigos em BH

Nas três vezes em que veio a Belo Horizonte tocar, Paco de Lucía esteve na companhia do espanhol Carlos Carretero e sua mulher, Fátima, proprietários do Centro de Cultura Flamenca. “Nos conhecemos em 1969, quando servimos no Exército juntos, perto de Madri. Nos reencontramos em 1986, quando veio fazer turnê pelo Brasil. Toda vez que vinha a BH jantava conosco. Era uma pessoa muito simples. Perdemos o maior inovador do flamenco nos últimos anos”, diz ele. O casal ajudou na produção dos shows na cidade.

A estreia em solo mineiro foi em 1986, no Minascentro, com o sexteto que tinha com os irmãos. “Vendemos pouco mais da metade dos ingressos, ele não era muito conhecido aqui”, afirma ele. Nas apresentações seguintes, ambas no Palácio das Artes, nos anos 1990, o artista teve casa cheia. O violonista encerrava a noite sempre no extinto Restaurante La Taberna, que Carlos e Fátima tiveram na Savassi.

Numa dessas ocasiões estava o violonista Fernando Araújo, hoje professor da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Uma das mais preciosas memórias que tenho é ter tocado para ele lá no restaurante. Ele gostou muito e, quando a gente se despediu, me deu um tapinha no rosto e disse que eu era muito talentoso. Gênios como ele são raros. Instrumentista fabuloso, anos-luz acima da média. Como compositor também”, recorda.

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