Podcasts enfocam crimes reais e ganham jeito de telenovela

Produções em áudio sobre crimes ganham plataformas de streaming e oferecem chance de refletir sobre problemas ainda vigentes na sociedade, além de reviver uma época de ouro do rádio

None
O ano é 1976. Em uma casa de veraneio na Praia dos Ossos, em Búzios, no Rio de Janeiro, um casal briga, há um pedido de perdão e quatro tiros na noite, como descrevem os jornais da época. Aos 32 anos, a socialite mineira Ângela Diniz é assassinada pelo então namorado, Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street. O crime entrou para a história como o Caso Doca Street, eternizando o assassino e esquecendo a vítima.  

Mais de quatro décadas depois, o enredo do Caso Doca Street não difere tanto dos noticiários da atualidade. Contudo, nem todos conhecem o crime, tão noticiado na época e importante para o movimento feminista. A partir dessa inquietação, surge o podcast Praia dos Ossos, um original da Rádio Novelo, apresentado por Branca Vianna.

Apesar de o material se basear em um crime real e ser visto por muitos como parte de uma cultura do true crime, as criadoras do Praia dos Ossos não o enxergam assim. “Os podcasts de crimes reais são uma investigação ou ‘reinvestigação’ do caso. Esse não tem mistério, fora uma ou outra teoria. Não se tem dúvida de quem matou e dos motivos. A ideia não é analisar o crime em si, nem sequer as pessoas envolvidas, mas as consequências daquele ato para a sociedade de um modo geral, o simbolismo”, explica Branca.

Ouça o primeiro episódio:


“Buscamos apresentar só o essencial e deslocar o eixo. Trazemos o crime no primeiro episódio e olhamos para tudo o que aconteceu. É sobre a mulher e tudo que aconteceu depois que ela foi morta”, completa a pesquisadora Flora Thomson-DeVeaux. 

fotos: divulgação
O assassinato de ângela Diniz (foto: fotos: divulgação)

Produção dos podcasts sobre crimes reais


Mais do que mergulhar no juridiquês do crime para contar essa história, Branca e Flora foram até Belo Horizonte e refizeram o percurso da mais bela jovem de boa família mineira que escapou da vida de rica dona de casa para o jet-set carioca.

Nesse caminho, Flora se debruçou sobre acervos de jornais, colunas sociais, rádios e redes de televisão para desvendar a voz, os trejeitos e a personalidade da Pantera de Minas, como Ângela Diniz ficou conhecida. “Muito mais do que um jornalismo investigativo, é uma leitura de narrativa. Estava olhando para a história da história, a forma como a história é contada, embora os fatos também interessem muito”, detalha a pesquisadora.

Diante dos recortes de jornais e muitas perguntas, as duas e a equipe da Rádio Novelo entrevistaram mais de 60 pessoas que participaram da vida da socialite. Para roteirizar e compor os oito episódios do podcast — dos quais cinco estão disponíveis nas plataformas digitais —, elas convidaram os roteiristas de cinema Aurélio de Aragão e Rafael Spínola. “Desde o início, tínhamos o arco da narrativa do que queríamos contar em cada episódio, em termos de temas, de conteúdos. Isso se manteve. Mas a forma como você encadeia uma narrativa em roteiro é muito diferente do que já tínhamos feito. Eles conseguiram trazer um jogo de tensão e distensão, de sequência de cenas”, analisa Branca, presidente da Rádio Novelo e apresentadora do podcast de entrevistas Maria vai com as outras.

Praia dos Ossos também faz uso do formato no qual apresenta a história para promover uma experiência imersiva que deixa de lado a morbidez do assassinato. Mais do que a fala dos entrevistados, os áudios trazem emoções, transportam no tempo e no espaço, revelam detalhes da cena e da época em que viveu Ângela. Tudo isso embalado por uma trilha sonora que casa forma e conteúdo.

“Não queremos transformar Ângela em ícone feminista, nunca foi nossa intenção. Queremos revelar a pessoa de verdade. Ela é uma figura muito interessante, era diferente. O que mais ouvimos dos entrevistados é que ela era uma mulher que nunca tinham visto antes”, afirma Branca. “A gente quer resgatar a Ângela desse lugar só de símbolo de feminicídio, de crime, e trazer um pouco da biografia”, pontua Flora. 

None
Mabê e Carol Moreira, apresentadoras do podcast Modus operandi

True crime brasileiro


Inspirado no norte-americano Serial, podcast de jornalismo investigativo apresentado por Sarah Koenig que narra histórias de não ficcção, o curitibano Ivan Mizanzuk queria criar uma narrativa baseada em um crime real. Em 2015, ele lançou o Projeto Humanos, podcasts “de histórias reais sobre pessoas reais” e, naquela época, almejava recontar o crime do menino de 6 anos que desapareceu em 6 de abril de 1992 na cidade de Guaratuba, no litoral do Paraná.

O corpo foi encontrado dias depois sem as mãos, cabelos e vísceras, suspeito de ter sido sacrificado em um ritual satânico. A história ficou conhecida como as Bruxas de Guaratuba.

Apesar da vontade, Mizanzuk só teve acesso aos autos do processo em 2017 e a temporada do O caso Evandro foi ao ar em 2018, como um dos primeiros podcasts brasileiros de crimes reais. “O caso criminal, narrativamente, tem um apelo que é a questão do mistério. O ouvinte quer desvendar. A gente vai fazendo um processo de compreensão e investigação do caso, e cada episódio leva uma pergunta”, explica o escritor. Mizanzuk comenta que nem conhecia o termo true crime antes de lançar a produção, mas reconhece que nos últimos anos a cultura tem se fortalecido no Brasil com séries, documentários e podcasts.

No decorrer da pesquisa e construção dos roteiros, o escritor se deparou com a complexidade do fato. “A vida real não se encaixa nesse modelo de oito episódios de uma hora que a gente se acostumou com séries da Netflix e HBO”, comenta. Era preciso esmiuçar, detalhar, dar zoom em alguns aspectos da história, esclarecer contextos da época, fazer com que o contraditório aparecesse, apresentar defesa e acusação. Dois anos depois de o primeiro material ser lançado, já são 36 episódios e ainda faltam dois temas: a identidade do corpo e os outros suspeitos. “Essa construção mostra muito o meu processo de entendimento do caso”, argumenta.

Professor de storytelling, Mizanzuk faz uso da técnica para contar a história de uma maneira envolvente, interessante e, ao mesmo tempo, respeitosa. Também se beneficia da prática em sala de aula. “Foi um processo de tradução, de pegar um ato penal e traduzir para uma narrativa. Entender o inquérito, os suspeitos, os denunciados, o júri, os recursos”, detalha. “Precisava estruturar isso de maneira que o espectador entenda a dinâmica, o que aconteceu com aquele personagem, então fui quebrando em temas”, acrescenta.

Na opinião de Mizanzuk, ao oferecer produtos sobre crimes reais, que destrincham o fato, abre-se um espaço para reflexões. “Permite que a sociedade se questione como crimes assim acontecem e levante questões sobre o sistema penal. Se a gente não tem produções brasileiras, não consegue fazer isso. Posso usar O caso Evandro, mostrando o processo como ele é. Fico feliz em ver o lançamento da Rádio Novelo. Mostra uma outra produção de alta complexidade importante, de um crime que praticamente havia caído no esquecimento. É preciso começar a olhar a cultura true crime brasileira consciente das implicações que isso tem no debate de segurança pública e fora dos modelos sensacionalistas. Acho que é isso que o público quer”, completa Mizanzuk.

None
Projeto Humanos: O caso Evandro

Comunidade


Amigas que já passavam horas conversando e compartilhando sobre produções true crime e as teorias por trás de cada assassinato, Carol Moreira e Marina Bonafé, a Mabê, formalizaram as trocas no podcast Modus operandi. Ali, cada episódio parte de uma história real. Existe um roteiro-base, criado por Carol, mas os fatos se impõem e criam narrativas únicas. “A gente quer contar a história do melhor jeito possível. Mas varia de episódio para episódio. Como eu contaria?”, questiona Mabê.

Antes das gravações, as duas se debruçam sobre livros, documentários, matérias jornalísticas e todas as informações disponíveis sobre o crime. “Mas, tentamos construir uma narrativa que tenha uma ordem cronológica. Tentamos ser muito didáticas, descrevemos ao máximo os personagens”, explica Carol. O processo é colaborativo e bastante natural, mesmo quando vai ao ar, buscando sempre o comprometimento com a verdade dos fatos e uma fuga de aspectos sensacionalistas.

A partir do podcast, Carol e Mabê abriram espaço para que outras pessoas pudessem se juntar nessa “conversa” sobre crimes reais. “As pessoas mandam casos, sugerem histórias que querem que a gente fale. Acabou criando uma minicomunidade dentro da rede social”, conta Mabê. Além disso, as duas expandiram a produção de conteúdo para outras mídias, sugerindo dicas de séries, filmes e documentários dentro desse universo. “É uma maneira de se comunicar com o público. Era uma coisa que a gente fazia entre nós. A pessoa assiste à série, por exemplo, e não tem com quem conversar, então a gente vira esse amigo”, comenta Carol.

A produção de Modus operandi também quer usar das histórias reais como ponto de partida para reflexões de problemas que ainda persistem na sociedade. “É a nossa razão. A gente está em 2020 e nada mudou, e agora?”, questiona Mabê. “A gente fala muito sobre o trabalho da polícia, por exemplo, trazemos esses questionamentos, mas sempre com muito cuidado”, pondera Carol.

Confira algumas sugestões de podcasts brasileiros sobre crimes reais disponíveis nas plataformas de streaming:

.Praia dos Ossos
.Projeto Humanos, temporada O caso Evandro
.Modus operandi
.Que crime foi esse?
.Assassinos em série
.Ficha criminal

MAIS SOBRE E-MAIS