Morre o escritor Sérgio Sant'Anna, aos 78 anos, vítima de coronavírus

Um dos maiores contistas do país, ele estava internado no Rio de Janeiro com suspeita de COVID-19

Guilherme Augusto 10/05/2020 09:52
Chico Cerchiaro/Divulgação
Sérgio Sant'Anna era um dos expoentes do conto nacional (foto: Chico Cerchiaro/Divulgação)
'É tão estranho saber que não vou mais ver aquele que conheci no dia mesmo em que nasceu', escreveu a escritora Sonia Sant'Anna, em uma rede social, ao anunciar a morte do irmão, Sérgio Sant'Anna, aos 78 anos.
 
Mestre do conto – assim como Rubem Fonseca e Dalton Trevisan – , ele estava internado em um hospital particular no Rio de Janeiro desde 3 de maio com sintomas da COVID-19. O autor deixa um filho, o escritor e roteirista André Sant'Anna.
 
Carioca de nascença, veio ao mundo em 30 de outubro de 1941. Aos 18 anos, deixou o Rio de Janeiro para vir se abrigar entre as montanhas que cercam Belo Horizonte. Ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e concluiu o curso em 1966. Da capital mineira, partiu para a França, onde cursou a pós-graduação no Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Paris.
 
A estreia na literatura ocorreu em 1969, com uma pequena edição, paga com a ajuda do pai, do livro de contos O sobrevivente. A publicação lhe rendeu uma bolsa para participar de um programa de formação de autores nos Estados Unidos.
 
Depois disso, lançou três livros nos anos 1970: a coletânea de contos Notas de Manfredo Rangel, repórter (1973) e os romances Confissões de Ralfo (1975) e Simulacros (1977). Radicalmente experimental, Confissões de Ralfo é até hoje considerado um de seus melhores livros. Narra a vida de um escritor que decide escrever uma autobiografia imaginária, repleta de episódios inverossímeis.
 
No ano em que lançou Simulacros, voltou a morar no Rio de Janeiro e passou a integrar o corpo docente da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), permanecendo até 1990.
 
Sérgio teve diversos livros de contos premiados. Ganhou o Jabuti por O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1986), o Prêmio Telecom por O voo da madrugada (2003) e o Prêmio Clarice Lispector por O Livro de Praga – Narrativas de amor e arte (2011).
 
O escritor também se destacou em outros formatos literários. Ganhou dois Jabutis pela novela Amazona (1986) e pelo romance Um crime delicado (1997), adaptado para o cinema por Beto Brant em 2005.

BELO HORIZONTE A vida em Belo Horizonte teve papel importante em sua formação como escritor. Em entrevista concedida ao Estado de Minas em novembro passado, um mês após completar 50 anos de carreira, Sérgio contou que começou a escrever na capital mineira.
 
''Publicávamos na nossa revista 'Estória' e no 'Suplemento Literário de Minas Gerais', dirigido pelo Murilo Rubião. Se não tivesse me mudado do Rio para BH, talvez não me tornasse escritor, embora fosse um leitor desde a infância. Em minha adolescência carioca, queria saber mais era de futebol de praia, corridas de cavalos, ver partidas do Fluminense, jogar sinuca e turma de rua'', explicou.
 
Era amigo dos jovens autores mineiros Luiz Vilela, Luís Gonzaga Vieira, Humberto Werneck, Jaime Prado Gouvêa e Sebastião Nunes, além do compositor Fernando Brant, que 'financiou', por assim dizer, a edição não comercial de Circo (1980), seu primeiro livro de poesias.
 
A breve experiência de morar em Minas rendeu-lhe a inspiração para Um romance de geração, peça de teatro publicada em 1981. ''Este livro marca meu retorno ao Rio e narra também minha experiência mineira, de que tenho saudades, principalmente dos muitos amigos que fiz em BH'', revelou, saudoso.

FILMES O cinema sempre prestigiou a literatura de Sant'Anna. O conto que dá título à coletânea A Senhorita Simpson (1989) virou o longa Bossa Nova, de Bruno Barreto. Um romance de geração deu origem ao filme dirigido por David França Mendes, lançado em 2008. Um crime delicado se destaca na filmografia do cineasta Beto Brant. O gorila, dirigido por José Eduardo Belmonte, premiou os atores Alessandra Negrini e Otávio Müller no Festival do Rio.
 
Torcedor apaixonado do Fluminense, sentia falta do Rio antigo, nostalgia que se refletiu em sua penúltima coletânea de contos, O conto zero (2016). Buscava inspiração para a escrita nas sessões de análise que manteve por mais de três décadas e, nos últimos anos, evitava se aventurar em relacionamentos e considerava a vida amorosa encerrada após os 70.
 
Seu último e 20º livro, Anjo noturno: Narrativas, lançado em 2017, traz à tona sua prosa transgressora ao se debruçar sobre a nostalgia, a morte, o amor e a solidão.
 
No conto A mãe, narrado do ponto de vista ora do menino, ora do adulto, ele aproveita a morte da mãe para revelar a vida de uma mulher religiosa e pudica que, como nos melhores melodramas, guarda um segredo.
 
Uma passagem desse conto chama a atenção: ''Durante o velório de seu corpo, meu pai, também um católico convicto e praticante, disse que minha mãe agora devia estar feliz, encontrando-se com as pessoas de quem mais gostara. E por mais ingênuo que eu possa parecer, às vezes fantasio um encontro meu num paraíso de almas, com todos aqueles que me foram ou são queridos. Então diremos uns aos outros, transbordando de felicidade: 'Puxa, conseguimos chegar aqui'.'' E, assim, Sérgio deve estar lá.
 
Amigos e escritores lamentaram a morte. Xico Sá destacou que o autor andava indignado e produzindo muito. O também escritor Daniel Galera chamou Sant'Anna de ''o mestre o conto'' que ''vinha enfileirando livros brilhantes e sensíveis''. 
 
 
 
 
 
 

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