'O mercador de Veneza' ganha montagem brasileira sob direção da britânica Catherine Paskell

Nove atores se entregaram à criação do espetáculo durante quatro semanas. A estreia será nesta quinta (12) no Centro Cultural Banco do Brasil.

por Carolina Braga 11/05/2016 08:21
Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Às 10h em ponto, os atores já estão em aquecimento. Trinta minutos depois, é hora de começar. E assim vão, sem intervalo mesmo para um copo d’água, até a pausa para o almoço. No turno da tarde é a mesma coisa. O ritmo incansável – e aparentemente prazeroso – é encarado pelos nove atores brasileiros selecionados para a montagem inglesa de O mercador de Veneza no Brasil.


A peça, que estreia amanhã no Centro Cultural Banco do Brasil, marca a abertura da edição 2016 do Fórum Shakespeare em Belo Horizonte. Faz parte da série de iniciativas realizadas no mundo todo para lembrar os 400 anos de morte do dramaturgo. Mas a montagem comandada por Catherine Paskell, diretora teatral do National Theatre Wales, deixa um exemplo que vai além da compreensão da poética shakespeareana. A produção foi criada em quatro semanas. Detalhe: sem mimimi de que seria pouco tempo.


Realizada em 2014, a primeira edição do Fórum Shakespeare foi muito focada em debates. Entre as avaliações do público havia um pedido: mais prática. Por isso as montagens. Se BH recebe O mercador, há um novo Hamlet em cena no Rio e um Macbeth em São Paulo. Encenadores afinados com o modo de fazer elizabetano compartilham suas experiências.
É assim que se fazia na época de Shakespeare e continua em voga na Inglaterra: os ensaios começam um mês antes da estreia. São oito horas por dia, seis vezes por semana. Não há espaço para jogar conversa fora. “Descobrimos se as coisas funcionam fazendo, sentindo. Isso também significa que a produção fica mais empolgante e com energia”, conta a encenadora.


O elenco de O mercador de Veneza foi escolhido entre mais de 200 atores que se inscreveram para as audições. O grupo é heterogêneo. Entre os mineiros estão Beto Militani, integrante do grupo Giramundo, Regina Souza, fundadora da Cia. Burlantins, Alexandre Vasconcelos, Edmilson Amaral, Felipe Galvão e Verônica Tannure. Vanessa Del Nigri vem de São Paulo e, da Bahia, Saulo Santos e Jomir Gomes.


Catherine Paskell trabalha com pesquisa, exploração e colaboração. Não há tempo para formação de atores ou timidez. Esperam-se proposições. “Teatro vivo, como uma forma de arte, é um caminho de compartilhamentos: de ideias com os outros, de perguntas sobre como queremos viver no mundo junto, de engajamento social com outras pessoas, independentemente se somos atores ou plateia”, diz a diretora.


“Nunca vivi uma coisa desse jeito”, reconhece a atriz Regina Souza. Acostumada a processos de montagens mais longos, está surpresa com o método de Paskell, nada burocrático e extremamente prático. “Apesar do pouco tempo, todas as vivências são muito intensas”, diz.


Catherine não chegou ao Brasil com ideias preconcebidas para a montagem. Dedicou a primeira semana a conhecer o grupo. Propôs diversos exercícios de improvisação. Em uma dessas séries, o desafio era fazer 27 cenas, em um dia, cada uma com cinco minutos. “Era bolar e fazer, sem muito espaço para o racional. Assim você acessa lugares que não acessaria”, explica Regina. Ao fim da prática, a encenadora já tinha em mãos muito material para ser lapidado.
Ao ser selecionado para a montagem, o ator Alexandre Vasconcelos achou que os trabalhos começariam direto na cena. Mas não. Ele considera que o espaço dado para a improvisação de cada artista foi importante para a originalidade da peça. “O argumento do ator tem que ser na ação. Saímos da parte teórica e vamos para a cena”, comenta.

Estudio Buena Onda / Divulgacao
Elenco da peça O mercador de Veneza (foto: Estudio Buena Onda / Divulgacao)


Para ele, o tempo concentrado de ensaios também favorece o resultado. A possibilidade de dedicação exclusiva, oito horas por dia, faz com que o processo criativo seja mais fluido. Apesar de ser uma realidade na Inglaterra, é uma raridade conseguir repeti-la sempre no Brasil. “Os atores tem outros afazeres”, afirma Vasconcelos, ressaltando que seria possível para uma realidade de grupo.


Catherine se surpreendeu com a versatilidade dos atores brasileiros. “Eles não se importam de tentar coisas novas. São abertos e generosos”, define. A diretora encontrou artistas dispostos a expor sua vulnerabilidade, o que, para ela, é um aspecto importante para qualquer ator. “Ser vulnerável significa que eles podem explorar a humanidade na sua forma mais crua e urgente – e é isso que Shakespeare faz em suas peças.”


O mercador de Veneza extrai o máximo da capacidade de cada ator. O cenário, criação do Grupo Giramundo, é composto por cinco caixas e pequenos objetos. A montagem é uma revisão contemporânea da peça, que explora como aqueles temas se refletem hoje na realidade brasileira e no mundo. Shakespeare escreveu o texto em um dos períodos mais politicamente conturbados da Inglaterra, por volta de 1596. Se a mensagem continua relevante hoje, é porque, infelizmente, a humanidade permanece com os mesmos conflitos de 400 anos atrás.

 

O mercador de Veneza – Fórum Shakespeare Belo Horizonte
Direção de Catherine Paskell. De 12 a 21 de maio (exceto dia 17, terça-feira). De quarta a segunda, às 19h. Teatro 2 do Centro Cultural Banco do Brasil – Praça da Liberdade, 450, Funcionários, (31) 3431-9400.
Entrada franca (mediante retirada de ingressos uma hora antes das apresentações). 

 

 

três perguntas para...

 

CATHERINE PASkELL
diretora do National Theatre Wales

 

1 A opção pela simplicidade tem a ver com o modo como Shakespeare também levava seus espetáculos?
A simplicidade do meu processo criativo e os aspectos estéticos da produção vêm da vontade de que aquele mundo seja criado pelos atores. Então, tem mais espaço para a imaginação, estudo e uma abertura para que o público também participe. As produções de Shakespeare eram marcadas por uma pequena cenografia – os mundos eram criados pelas palavras dos atores e seus corpos. Nosso O mercador de Veneza reflete essa tradição. Nós também temos a audiência disposta nos três lados do palco, assim como é no Shakespeare’s Globe Theatre. A trupe dos atores de Shakespeare também era colaborativa, em que cada ator, escritor ou gestor participava da produção da peça: Shakespeare não criou tudo sozinho.

2 O que é mais importante na relação entre o diretor e um grupo de atores?
O diretor e os atores trabalham juntos para criar o universo da peça. Meu papel é ajudá-los a oferecer o melhor e superar as próprias expectativas. Tenho uma visão de fora sobre o espetáculo e os atores têm uma visão interna, um trabalho detalhado do roteiro. O aspecto mais importante da nossa relação é a verdade. Dedico tempo no início do processo para conhecer a individualidade deles e construir uma identidade de grupo para permitir que confiem em mim, no processo e em cada um. Com confiança e segurança, podem tentar novas ideias e falhar sem medo.

3 Que característica própria de O mercador de Veneza faz dele um texto contemporâneo, como tantos outros de Shakespeare?

Shakespeare respondeu a temas que afetaram sua sociedade há 400 anos. Infelizmente, a humanidade não mudou e os temas presentes em todas as suas peças continuam afetando a nossa sociedade moderna. Em O mercador de Veneza, estão questões de ódio, vingança, misericórdia, traição, racismo, justiça, interpretações da lei – todos temas muito presentes em nossas vidas, especialmente na sociedade e na política brasileiras este ano.

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