Jovens artistas apostam em testes para integrar elencos de peças de Shakespeare

Uma das audições, na sede do Grupo Galpão, reuniu candidatos vindos de cidades como Curitiba e Salvador, além de BH. Iniciativa é de projeto que repensa legado do autor

por Carolina Braga 03/04/2016 17:03

Beto Novaes/EM/D.A Press
Candidata se apresenta durante audição com o Grupo Galpão, em Belo Horizonte (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
Os olhos azuis esverdeados de Thaíssa Trancoso saíram mais arregalados do que o normal assim que porta vermelha da sala de ensaios do Grupo Galpão se abriu. “É de boa!”, disse a jovem, sorridente, para as candidatas que ainda esperavam a vez. Aos 24 anos de idade, foi a primeira vez que Thaíssa participou de um teste para a escolha de elenco. O nervosismo foi inevitável. “Fiquei feliz por ter trazido meu pandeiro”, disse com alívio.
Para ela e outros 43 atores e atrizes de Belo Horizonte, Curitiba, Brasília e Salvador, esta segunda-feira será um dia de ouvido grudado no telefone, atenção redobrada no e-mail ou qualquer outro meio de comunicação possível. Nove deles receberão o sim para fazer parte da inédita montagem de O mercador de Veneza, texto de William Shakespeare. É o lado cruel da profissão de ator: lidar com a expectativa a cada audição.

Calejados Integrante do grupo Capim Rosa Chá, de Salvador, o ator Saulo Santos investiu pelo menos R$ 600 com ônibus, estadia e alimentação, para estar em Belo Horizonte e participar do processo. Pela experiência, avalia que valeu a pena. “Acostumado não é a palavra, mas acho que vamos ficando calejados de testes mesmo. Sempre dá aquele nervoso. Não é uma sensação boa, mas fazer é sempre um exercício muito bom”, diz.


“Teste é sempre um desafio. É o terceiro que eu faço. Mas acho importante treinar porque é uma rotina do nosso trabalho, faz parte”, resigna-se Marina De Nobile. A atriz de 22 anos é de Araraquara (SP), aluna do curso de artes cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto e esteve em Belo Horizonte também na tentativa de conquistar um dos papéis. “É impossível não ficar nervosa, mas também estou lisonjeada de chegar até a última etapa.”


Para os personagens da comédia escrita entre 1596 e 1598 apareceram 200 interessados. A primeira etapa foi uma seleção por currículo e carta de interesse. Os oitenta selecionados nesta peneira enviaram dois vídeos com monólogos da peça, com trechos escolhidos pela produção. Os 44 finalistas fizeram o teste pessoalmente, na sede do Galpão.
Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo foram as cidades escolhidas pelo People’s Palace Projects em integração com o Fórum Shakespeare para receber o projeto. Como o objetivo é repensar o legado de Shakespeare na passagem dos 400 anos de morte do dramaturgo, três peças do Bardo ganharão montagem nacional, todas elas dirigidas por gringos. O mercador de Veneza terá direção da britânica Catherine Paskell, integrante da Royal Shakespeare Company radicada no National Theatre of Wales.

Conectados Os testes em Minas foram comandados por Paul Heritage, curador do Fórum Shakespeare, com participação dos atores Arildo de Barros e Inês Peixoto, do Grupo Galpão. Como a decisão final é de Catherine, ela acompanhou tudo pela tela do Skype, direto do País de Gales. “A primeira coisa que estou procurando é conhecer o estilo de cada um como ator e a abordagem que fazem ao texto. Depois procuro perceber como eles lidam com as sugestões de direção que apresentamos”, revela.


Catherine Paskell é muito amável com os candidatos. Mesmo sem falar português – e à distância – se esforçou para que o momento fosse o menos tenso possível. Para a surpresa dos participantes, os testes começaram com uma música. Segundo a britânica, uma forma de relaxar e também surpreender. A medida em que são solicitados a fazer algo que não esperavam, demonstram capacidade para o improviso. Revelam a essência.


Depois da música, era a vez de apresentar os textos, os mesmos gravados em vídeo. Cada ator tinha a liberdade para fazer como quisesse e depois Catherine acrescentava os desafios. “Gostaria que fizesse o mesmo texto, mas como se você estivesse assaltando um banco com ele”, sugeriu a uma candidata. À outra, pediu o contrário: que apresentasse as falas como se estivesse escrevendo um diário.


“Meu olhar está mais no entendimento do texto e das cenas. Observo a postura e a disponibilidade corporal para os comandos que a Catherine está passando. Vejo também como está a dicção deles”, diz Inês Peixoto. A atriz do Galpão salienta que, para ela, o mais difícil é o fato de conhecer quase todos os candidatos. “Queria que todos passassem porque o projeto é muito bacana.”


De acordo com Thiago Jesus, representante do People’s Palace Projects, nove atores serão selecionados independentemente do gênero dos papéis da peça escrita por Shakespeare. “Estamos fazendo o elenco misto mesmo. Estão pensando na qualidade dos atores”, informa. Os ensaios começam em 11 de abril e a peça estreia em 12 de maio. O cronograma ainda está indefinido. O certo é que serão pelo menos oito horas de trabalho diário. Além da peça, o projeto também inclui oficinas gratuitas e debates.


Ineditismo surpreendente

Se é que existem peças pouco conhecidas de William Shakespeare, O mercador de Veneza é uma delas. “Acho que nunca teve uma montagem em Belo Horizonte”, diz o ator Arildo Barros, do Grupo Galpão. “Eu também acho que não”, concorda Inês Peixoto. Foi justo esse “ineditismo” que determinou a escolha do texto pelo Fórum Shakespeare.


“Queria uma que fosse menos conhecida. Gosto de contar histórias assim”, afirma Paul Heritage, Professor de Artes Dramáticas da Queen Mary University of London e curador do Fórum Shakespeare. A montagem de São Paulo será Macbeth e do Rio A tempestade. Não está nos planos fazer com que as peças circulem pelo Brasil.


O modelo de produção a ser adotado é o chamado Elisabetano, ou seja, os espetáculos centrarão forças na relação entre o ator, o texto e a plateia, sem grandes cenários ou outros elementos na cena. Por isso a escolha dos intérpretes é tão importante.

Considerada uma comédia trágica, O mercador de Veneza foi escrita entre 1596 e 1598. Na trama, o mercador Antônio pede 3 mil ducados ao judeu Shylock com o objetivo de cortejar uma dama. Recebe como condição o pagamento em três meses. Caso o prazo não seja cumprido, terá que entregar ao agiota um pedaço de sua própria carne.


Para a diretora Catherine Paskell, O mercador de Veneza carrega uma mensagem sobre a importância do perdão na sociedade. “Ódio virou palavra do dia, em vez de ser amor e perdão”, observa a encenadora. “Excluindo o fato de ser antissemita o texto tem uma discussão sobre Direito que está muito na naturalidade. Fala sobre os meandros das leis. Há um discurso de posse”, acrescenta Inês Peixoto.

 

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