Guitarrista do Autoramas e cartunista relembram geração das fitas demo em HQ

Gabriel Thomaz e Daniel Juca recontam histórias da era do cassete em 'Magnéticos 90'

por Estado de Minas 26/03/2016 07:00

Do ponto de vista da indústria fonográfica e do mainstream, o rock nacional experimentou um silencioso hiato depois da explosão das bandas dos anos 1980. No entanto, barulho era o que não faltava, enquanto gravadoras se interessavam por duplas sertanejas e pela lambada no início da década de 1990. Uma geração independente surgiu em diferentes cidades brasileiras, ganhou força e passou a lotar as casas de shows. Muitas dessas bandas jamais chegaram a gravar discos pelas majors: a principal forma de divulgação eram as fitas cassetes, gravadas e distribuídas de maneira quase artesanal.

Com o Little Quail and the Mad Birds, o guitarrista Gabriel Thomaz, hoje no Autoramas, foi testemunha e personagem dessa história. Ele decidiu “rebobinar” (como se fazia nas fitinhas, com a ajuda de um lápis): convidou o cartunista Daniel Juca, editor da Tarja Preta, para recontar, em quadrinhos, esse período muito particular da música do país. “Num primeiro momento, gravar uma fita demo não tinha status absolutamente nenhum. Era puro amadorismo, falta de opção. No meio dos anos 1990, ter a sua demo já era uma coisa sensacional. As capas passaram a ser benfeitas, as gravações ficaram legais”, diz Gabriel.

O resultado da parceira foi Magnéticos 90 (Edições Ideal), um divertido relato em primeira pessoa, lançado recentemente. O livro começou a ser idealizado há três anos, quando Gabriel percebeu que era difícil encontrar músicas de grupos que fizeram relativo sucesso na época. Ele decidiu, então, recuperar e digitalizar sua coleção de fitas, que tem cerca de 400 itens. Entre elas estão gravações de bandas que depois alcançaram êxito comercial, como Graforreia Xilarmônica, Raimundos, Relespública e Planet Hemp.

Mas também há registros mais obscuros, como os de Mickey Junkies, Beach Lizards, Professor Antena, Pato Fu, Acabou La Tequila, Cabeça, Noção De Nada, Boi Mamão, Os Animais dos Espelhos e Muzzarelas. Algumas delas já estão disponíveis no site https://magneticos90.com.br. “Comecei a procurar bandas dessa época e não tinha quase nada na internet. Pela minha memória, eram grupos que lotavam as casas, que eram sucessos regionais ou até um pouco além disso. Concluí que todas essas bandas foram lançadas em fita cassete, que é uma mídia facilmente deteriorável”, conta Gabriel. “Conforme digitalizava, lembrei-me de um milhão de histórias e decidi fazer o livro.”

As histórias são justamente o ponto mais interessante de Magnéticos 90. Nelas, a versão cartum de Gabriel (com topete rockabilly e tudo) é testemunha de momentos hilários e históricos daquela geração. A capacidade do músico brasiliense de estar em todas fez com que ele fosse apelidado de “figurinha fácil” pelos integrantes da banda carioca Gangrena Gasosa.

Apesar de alguns dos casos contados na HQ também estarem em livros, como Cheguei bem a tempo de ver o palco desabar (Editora Arquipélago), de Ricardo Alexandre, e Esporro (Tamborete Entertainment), de Leonardo Panço, os desenhos de Juca deixam tudo ainda mais engraçado. É divertido ver o vocalista do grupo carioca Chatos e Chatolin vestido como o Chapolin do SBT, preso durante horas em um cabo de aço sobre o palco do Circo Voador. Ou então observar o líder de Piu Piu e Sua Banda, também do Rio, “atear fogo”’ (estava protegido, é claro) no próprio corpo no Canecão aos gritos de “Viva o sexo anal”.

“Depois de escrever tudo, ler e reler, achei que precisava ser uma coisa mais visual. Para quem não viveu a época, só as palavras não seriam capazes de explicar o que foi aquilo tudo. Veio, então, a ideia de fazer em quadrinhos”, conta Gabriel. A opção por convidar Juca foi natural. Velho conhecido do autor, ele estava em todos os shows do Little Quail no Rio. Zineiro da velha guarda, também foi observador privilegiado de muita coisa contada no livro. “Descobri cedo que fazer fanzine era mais fácil do que aprender um instrumento”, brinca Juca. “A ideia do livro é remeter graficamente à estética dos zines. Tudo em preto e branco, parecendo xerox. Desenhei muita coisa também em cima de fotos da época e das capas das fitas.”

Embora seja um abrangente levantamento de bandas e cenas de todo o país, o livro serve também como uma pequena biografia de Gabriel. Os quadrinhos mostram a formação do Little Quail, ainda em Brasília, até o surgimento dos Autoramas, já no fim das 224 páginas. “Seria impossível catalogar tudo. A solução foi levar para o lado pessoal”, explica.

E se alguém argumentar que as fitas têm qualidade ruim, vai ouvir de Gabriel uma longa e apaixonada defesa do formato, que, segundo ele, está de volta. “Tenho comprado fita pra cacete”, diz ele, num trocadilho incidental. “Os detratores falam que a qualidade é terrível, mas, me desculpem, a qualidade do MP3 comprimido não é boa! O MP3 achata a música. No cassete, por mais que o som soasse abafado, a música tinha milhares de camadas. Aí vem alguém querer botar defeito no meu romantismo? Poxa, que sacanagem.” (Mateus Campos – Agência Globo)

Magnéticos 90
. De Gabriel Thomaz e Daniel Juca
. Ideal, 224 págs., R$ 49, 90.


EM BH
Em passagem do livro, Gabriel relata show em Belo Horizonte, no lendário Squat, uma casa apertada ao lado do Estadual Central, na Rua Fernandes Tourinho. É engraçada a passagem em que encontra John Ulhoa e Fernanda Takai, ainda nos primórdios do Pato Fu. E relembra o show dos Baratas Tontas, também hoje lendária banda de psychobilly dos anos 1990.



RARIDADES EM CASSETE
Os Animais dos Espelhos

» “Essa foi uma das bandas que me inspiraram a escrever o livro. Era uma banda de Brasília que lotava os lugares onde tocava, tinha um público fiel. E eu não achava absolutamente nada deles na internet. Agora tem.”

Acabou a Tequila
» “Eles lançaram uma fita demo que rodou muito e influenciou muita gente. Mas, no site, subi uma anterior: a primeira deles só com duas músicas, uma raridade.”

Planet Hemp
» “É uma gravação que eles fizeram pra mandar pro produtor Mario Caldato, que produziu o segundo disco deles. O legal dessa gravação é que tudo é orgânico, nada eletrônico, como seria depois no disco.”

Richard Kleiderman
» “Os titãs Branco Mello e Sérgio Britto juntos com Roberta Parisi fizeram um projeto paralelo. Na capa, o nome da banda é Richard Kleiderman, mas o representante no Brasil do pianista não gostou da ideia. Então, depois eles lançaram um disco só como Kleiderman mesmo.”

Fim de Século
» “Compilei 30 faixas de bandas da época. Tem Raimundos com bateria eletrônica, uma do Graforreia Xilarmônica chamada Mixto quente e demos sensacionais do Pato Fu, Doiseu Mimdoisema (um clássico) e muito mais.”

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