Em universo dominado por homens, quadrinistas mulheres trazem vigor para a produção nacional

Feiras, financiamento coletivo e distribuição em bares e pela internet são usados para criar espaço de divulgação, circulação e venda da produção independente feminina

por Shirley Pacelli 04/10/2015 11:00

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Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
A ilustradora e quadrinista Laura Athayde aborda questões ligadas ao feminismo e prepara sua primeira graphic novel (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Desalinear-se: sair do alinhamento, desfazer, desordenar. Com tirinhas que retratam assédio moral, aborto e a vivência da própria sexualidade, Aline Lemos se assumiu “Desalineada”, na vida e na rede. “Por que as histórias que lemos e assistimos precisam ser sempre protagonizadas por homens brancos heterossexuais?” O incômodo levou a mineira, de 25 anos, à Angoûleme (França) – considerada a capital dos quadrinhos –, onde ela começa, na semana que vem, as aulas de mestrado em história dessa arte. A quadrinista faz parte da geração de mulheres que, ao lado de coletivos, têm fortalecido o gênero na cena cultural de Belo Horizonte, em eventos e feiras de produção independente.

Se desenhar para ela sempre foi uma forma prazerosa de se expressar, o empurrão definitivo para levar a prática mais a sério veio da movimentação na capital mineira. Além do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), realizado a cada dois anos, ela conheceu algumas iniciativas de incentivo às novas autoras. “Meus primeiros quadrinhos depois de adulta foram feitos em 2013 para a Revista Inverna e para o Zine XXX, dois projetos muito bacanas com esse objetivo.” Desde então, ela se conectou a outros quadrinistas jovens em grupos de discussão na internet e participou de coletivos de mulheres artistas, como as ZiNas, de BH, e a Mandíbula, na internet. “Esse apoio foi fundamental para que eu começasse a publicar.”

A pequena participação de mulheres em eventos, revistas e prêmios, aquém do número de artistas existentes no país, demonstra para Aline que ainda existem muitas barreiras impostas às autoras. O HQMix 2015, principal premiação de quadrinhos no Brasil, teve apenas uma jurada mulher e só 15% de indicações femininas em todas as categorias. “Ainda há resistência em discutir a participação das mulheres, a presença do sexismo e do preconceito de forma geral. Mas boa parte das reações negativas se deve ao fato de que, agora, essas não são questões que podem ser ignoradas. Por isso, vejo os avanços de modo muito positivo”.

Munida de nanquim ou aquarela, os materiais com que mais gosta de trabalhar, Aline se inspira no feminismo para criar. Atualmente, ela trabalha em um quadrinho para a RISCA!, projeto de revista do Lady’s Comics com o tema “Memória e políticas das mulheres nos quadrinhos”. Para discutir essa questão, ela usa a Kabelluda, personagem de tirinhas criada pela poeta Pagu nos anos 1930. “Gostaria que mais pessoas pudessem se identificar nos quadrinhos e na cultura, que tivessem empatia com as histórias de outros grupos marginalizados e, principalmente, se sentir inspiradas a narrar suas próprias histórias”, explica.

Aline Lemos/ Divulgação
Tirinha de Aline Lemos publicada na página do Facebook Mandíbula, um coletivo só de mulheres (foto: Aline Lemos/ Divulgação)
Hobbie


De forma natural, o feminismo também é o tema principal das produções de Laura Athayde, quadrinista e ilustradora manauara, que, depois de uma passagem por São Paulo, veio morar na capital mineira. Trabalhando como advogada em São Paulo, foi só em BH que o hobbie das HQs se tornou carreira. “Conheci o feminismo quando comecei a conhecer o quadrinho nacional. Meu trabalho não é panfletário: como sou mulher, essas situações acontecem no meu dia a dia”, esclarece. E são os quadrinhos autorais, que abordam o cotidiano, que a fascinam.

Inspirada nessa temática, Laura reúne suas produções na página Boobie Trap no Facebook, que tem cerca de 17,6 mil curtidas. O nome faz um trocadilho com as palavras armadilha (booby-trap) e seio (boob), em inglês. Na série Aconteceu comigo, a quadrinista conta histórias aleatórias enviadas por suas leitoras. A mais recente publicação traz o relato de uma jovem que não usava biquíni há 8 anos por vergonha do seu corpo. “São coisas com as quais me identifico. Gostaria de abordar essa mensagem de maneira mais leve”, explica.

Feiras


No coletivo virtual Mandíbula, formado por sete mulheres de BH, Brasília e Santos, Laura enfrenta desafios semanais com outras integrantes. Dessa forma, a página tem desenhos novos todos os dias. A iniciativa também funciona como uma rede de apoio mútuo. As autoras trocam os trabalhos entre si e os levam para as feiras de que participam. Assim, a produção diversificada se distribui pelo país.

Outra forma de ser vista são as feiras de publicações independentes. A manauara participa da Faísca, realizada mensalmente no BDMG Cultural, e marcou presença na feira promovida no 16º Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, no fim de semana passado. “Acho importante para fomentar o contato com o público. E a troca de informações entre os autores nos dá impulso a produzir mais”.

Em novembro, no FIQ, Laura lançará Arquipélago, sua primeira HQ longa, em parceria com a editora Tribo. Além disso, ela foi convidada com outras ilustradoras para redesenhar um personagem da DC Comics. A Hera Venenosa à la Laura ganhará um cosplay personalizado.

Espaço

E por falar em FIQ, pela primeira vez na história do evento, a identidade visual foi feita por uma mulher. Os traços suaves da 9ª edição são de Lu Cafaggi, quadrinista belo-horizontina que ganhou visibilidade, especialmente, pelo seu trabalho em Laços e Lições, graphic novels da Turma da Mônica produzidas com o irmão Vitor Cafaggi.

A novidade faz parte de uma evolução bem-vinda no festival. Se antes existia a preocupação de se criar uma mesa das mulheres nos quadrinhos, hoje se vê a necessidade de elas estarem em todas as mesas para debater sobre diferentes assuntos. “Não existe mais essa de ‘considerando que você é uma mulher, fale sobre a sua experiência’. Ou ‘ok: a gente vai abrir um espacinho para elas falarem’”, considera Lu.

A quadrinista tem uma experiência pessoal de abertura do mercado para o seu trabalho e por isso se considera um caso de exceção. Contudo, ela não escapa de situações ofensivas ou de assédio. “Muitos homens compram minhas produções e falam que é para namorada. Se é feito por menina, então é para garotas. E há uma maneira diferente do leitor aos nos abordar. Comparo como lidam com meu irmão. Às vezes, recebo cantadas. Estou ali só para conversar sobre o trabalho e as pessoas passam do limite.”

Lu começou a fazer quadrinhos profissionalmente em 2010. Um ano antes, durante o FIQ, ela havia descoberto que era possível contar qualquer história por meio das HQs. “Eu lia a Mônica, e meu irmão, histórias de super-herói. Achava que só humor e sagas cabiam nessa linguagem”, conta. Daí, aos poucos, ela experimentou diferentes tipos de produção: de tirinhas de piadas fechadas a histórias menores.

Com formação em comunicação, a artista investigou o jornalismo em quadrinhos no seu trabalho de conclusão de curso. Joe Sacco, que faz grandes reportagens nesse formato, especialmente sobre regiões em conflito, é uma de suas inspirações. “As pessoas partem do pressuposto que uma história em quadrinhos é ficção. Pesquisei sobre a questão da objetividade e subjetividade nessas reportagens. O traço é algo muito pessoal”, diz.

Seu mais novo projeto, o livro Quando tudo começou – Bruna Vieira em quadrinhos, é um derivado desse tipo de produção e aponta para o propósito profissional que ela pretende seguir. “A Bruna, adolescente fenômeno da internet, me contou a vida dela e retratei em um livro de 80 páginas de quadrinhos. Foram descrições de cenas esparsas e precisei construir a narrativa pensando no processo de transformação dela como escritora”, diz. A ideia de Lu é contar em quadrinhos histórias de pessoas anônimas: “Todo mundo tem uma vida muito rica”.

CRISTINA HORTA/EM/D.A PRESS
Amanda Reis é a criadora de 'Anna Bolenna, a perturbada da corte', personagem autobiográfico (foto: CRISTINA HORTA/EM/D.A PRESS)
Faça você mesma


Diante de um mercado editorial difícil, ainda mais escasso de oportunidades para mulheres, as novas autoras se viram como podem. A quadrinista Amanda Reis, de 22 anos, é responsável pela personagem Anna Bolenna – a perturbada da corte, que virou livro em 2015 graças a uma bem-sucedida campanha de financiamento coletivo, que arrecadou R$ 28 mil. Depois de distribuir 400 livros entre os fãs que apoiaram o projeto, ela vende os exemplares restantes em uma lojinha on-line por R$ 30.

As tirinhas autobiográficas da estudante de artes visuais são seguidas por cerca de 185 mil pessoas no Facebook. A Anna, que era uma “feminista periguete do reino” e se apresentava em narrativas de humor crítico e sexual, foi ficando mais romântica. “O Facebook chegou a tirar minha página do ar. Um cara falou que era absurdo fazer ‘apologia ao sexo’”, lembra a autora, entre risos.

Com a versão da Anna “soft”, a quadrinista faz sucesso com um público maior. As histórias de “pé na bunda” são as mais populares, chegando a alcançar até 1 milhão de pessoas na rede social. Diante disso, sua nova série será inspirada nas histórias de término dos leitores. Foram mais de 300 histórias recebidas durante duas semanas. “Tenho um relacionamento próximo com os fãs. Eles vão no evento onde estou, conversam comigo. Em São Paulo, costumo me hospedar na casa de uma delas. Minha relação vai além do desenho”, conta Amanda.

Carolita Cunha, de 29 anos, adotou outra estratégia para vender as fanzines dos personagens Kaka Kú e Fudivaldo: oferece em pontos boêmios de BH a R$ 5 ou R$ 10 e um abraço. “O abraço é uma forma afetiva de expressar minha gratidão pelo incentivo ao meu trabalho”, conta. Com tirinhas repletas de ironia, sátiras, sexo e escatologia, ela se diverte. “É libertador trabalhar com assuntos que, embora sejam comuns, carregam um peso moral por se tratarem de tabus.”

As feiras, para ela, não costumam ser economicamente tão rentáveis quanto as vendas em bares. “Participo com o propósito de interação com outros artistas e divulgação dos meus quadrinhos”, explica. E foi por meio desses encontros e pela internet que ela conheceu outras seis meninas e fundou o coletivo ZiNas, de produção de fanzines, ilustrações e afins. O grupo já tem quatro publicações e executa projetos artísticos-culturais com foco em direitos humanos e inclusão de minorias, como a oficina realizada durante a Virada Cultural de BH, em setembro.

Desde junho, em todo terceiro sábado do mês, o BDMG Cultural recebe a feira de publicações independentes Faísca– Mercado Gráfico. A iniciativa da produtora cultural Helen Murta e do quadrinista belo-horizontino Jao vem de uma ideia antiga de promover uma feira periódica na cidade. “É um espaço onde rolam debates, trocas e a projeção de novos artistas”, resume Helen. Cerca de 45 pessoas participam mensalmente, e o público varia de 200 a 600 pessoas a cada sábado. A próxima edição será realizada no dia 17. O casal também é responsával pelo Festival Traço, evento em que, simultaneamente à apresentação das bandas, desenhistas fazem ilustrações que são projetadas em um telão.

RESGATE DA MEMÓRIA


Formado por residentes de Belo Horizonte, o coletivo Lady’s Comics é hoje referência nacional em pesquisa e projetos sobre mulheres e quadrinhos. Criado há cinco anos, inicialmente apenas como um site, o projeto de Mariamma Fonseca, Samara Horta e Samanta Coan precisou ir além. “Percebemos com o tempo que precisávamos de outros produtos e atuações como proposta”, diz a designer gráfica Samanta, de 27 anos.

Assim, além da página on-line, elas criaram o BAMQ!, banco de dados de mulheres quadrinistas que promove o resgate da memória. Em 2014, o trio realizou o primeiro evento dedicado a discutir a participação feminina no gênero. Autoras de todo o país participaram de palestras, mesas-redondas e debates. O encontro é considerado um marco para as quadrinistas.

O coletivo agora concentra seus esforços na promoção da campanha de financiamento coletivo para a publicação da revista Risca!, que trará o tema “Memória e política das mulheres nos quadrinhos!”. Em seu primeiro volume, a publicação abordará temas como aborto, mulheres negras, identidade de gênero e precursoras no Brasil. Dos R$ 10 mil pretendidos, já foram arrecados cerca de R$ 4 mil. A campanha se encerra no dia 24 (catarse.me/revistarisca).

Além disso, o Lady’s abriu espaço para correspondentes fora do país, a fim de fomentar a discussão. O trio desenvolve ainda a oficina Quati, de quadrinhos para crianças. “Tenho a sensação de que o mercado melhorou, mas é inevitável. Tem mais meninas sendo publicadas pelo financiamento coletivo, que viabiliza o projeto por meio do público que elas criaram nas redes sociais”, destaca Samanta.


Confira:


Desalineada
Por Aline Lemos
https://goo.gl/eD4Dt5

Boobie Trap
Por Laura Athayde
https://goo.gl/ChxcWI


Mandíbula
https://goo.gl/k9bpVn


Lu Cafaggi
lucafaggi.tumblr.com

Anna Bolenna – a  perturbada da corte
Por Amanda Reis
https://goo.gl/sj4vmZ


Meu Quarteliê
Por Carolita Cunha
https://goo.gl/JFrRqP

Faísca
https://goo.gl/CTLGDq

ZiNas
https://goo.gl/EPhXCt

Lady’s Comics
ladyscomics.com.br

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