Se estivesse vivo, Henfil completaria 70 anos nesta quarta-feira

Mineiro foi artista ligado em seu tempo e com aguda consciência política do seu trabalho

por Agência Estado 05/02/2014 10:07

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Arquivo Estado de Minas
O cartunista mineiro Henfil, em 1971 (foto: Arquivo Estado de Minas )
Se estivesse vivo, Henrique de Souza Filho faria 70 anos nesta quarta-feira, 05. Quem? Henfil, ora! Quem não o conheceu em sua época? Afinal, seu traço rápido e cheio de movimento deu origem a personagens que entraram para o imaginário brasileiro nos anos 70 em especial: a Graúna, o bode Francisco Orellana, o cangaceiro Zeferino, os Fradinhos. Henfil foi superconhecido de uma geração que ficava esperando, com água na boca, seus novos cartuns.

Confira algumas tirinhas de Henfil

Com seus personagens, Henfil brincava com os estereótipos. Graúna, o Cangaceiro e o bode, por exemplo, apareciam sempre em trio. O cangaceiro Zeferino era um clichê do nordestino machista e violento. Graúna era analfabeta, mas de inteligência viva. Ela poderia encarnar aquilo que Ariano Suassuna definiu em seu Auto da Compadecida: “a esperteza é a coragem do pobre”. O bode Orellana ironizava o intelectual livresco (a comida preferida do bode eram os livros), com muita cultura, porém com profunda ignorância das condições reais em que vivia o povo e como ele pensava.

Com essa trinca, Henfil comentava a situação do País, que vivia sob uma férrea ditadura. No caso, captava a situação do interior nordestino, a caatinga, a indústria da seca, o coronelismo e o mandonismo da região, com seus próceres sempre alinhados com o governo. Afinal, lucravam muito à custa da miséria alheia. Continuam lucrando, aliás.

O traço rápido e irreverente de Henfil era sua forma de pensar um Brasil cuja luz no fim do túnel podia ser a de um trem vindo em direção contrária, como dizia outro mestre do humor, Millôr. Corajoso e ácido, fustigava a ditadura através das brechas deixadas pela censura, mas não poupava quem a combatia de forma romântica e idealizada. Daí a implicância com a oposição livresca, que caracterizou no bode Orellana, com seu apetite por celulose e o chapeuzinho coco na cabeça.

O medo generalizado de viver sob um regime autoritário era expresso através de outro dos seus personagens, Ubaldo, o Paranoico, que, como o nome diz, tinha medo de tudo, até do que não precisava ter. Mas, como lembrava seu autor, mesmo os paranoicos às vezes têm seus perseguidores reais. O medo existia e, embora paralisante, tinha raízes no mundo real, na sociedade que não oferecia garantias individuais contra a prepotência, em especial depois da decretação do Ato Institucional n.º 5 em dezembro de 1968.

Essas frestas da ditadura, Henfil ocupava alegremente, por assim dizer. São antológicos alguns dos seus desenhos no Pasquim, o famoso “hebdô”, que marcou a renovação da linguagem jornalística do País. O Pasca tirou a gravata do texto e do desenho com um time brilhante e afiado: Millôr, Ziraldo, Jaguar, Paulo Francis, Ivan Lessa, Sérgio Augusto e, claro, Henfil. O espírito da coisa era oralidade nos textos, desenvoltura nos desenhos e senso crítico sem complacência. Era o lugar ideal para cada um, e, em especial, para o mineirinho Henfil, que chegou ao Rio para bagunçar o coreto.

Alguns dos seus desenhos no Pasquim são antológicos. Criou uma série que era dinamite pura, intitulada O Sobrevivente. Tinha desenhos como um assaltante esfaqueando uma velhinha para roubar-lhe a bolsa, um empresário da construção civil dirigindo-se a um operário caído do andaime, um urubu comendo o fígado de um condenado, um avião americano lançando bombas sobre vietnamitas. A fala dos protagonistas de cada cartum era sempre a mesma: “Tenho de sobreviver, entende?”. No caos gerado pela ditadura, sobrevivência era a palavra de ordem. E os patifes a invocavam para justificar seus atos.

NÃO POUPAVA NINGUÉM

Criou, também no Pasquim, um “cemitério dos mortos-vivos”, a Casa do Caboco Mamadô, no qual enterrava os dedos-duros. Gente do meio artístico que supostamente teria se passado para o lado da ditadura e denunciado colegas. Na época, havia uma definição muito clara entre o “lado bom” e o outro, que ficava a favor de um governo ilegítimo, que perseguia, prendia, torturava e matava. Esse, digamos assim, maniqueísmo, tinha sua justificativa histórica numa época em que a maior parte da sociedade civil vivia farta da ditadura e ansiava pela volta da democracia.

Se os militares eram os vilões no campo interno, os Estados Unidos eram o alvo, no externo. Henfil, como toda a esquerda, via com péssimos olhos o intervencionismo americano em vários países do mundo, e exultou quando o Vietnã venceu a guerra. A mais improvável das vitórias, um povo corajoso de um país minúsculo botando para fora do seu território a maior potência do mundo. Henfil saúda o fato com um desenho em que Henry Kissinger conversa com um vietcongue e lhe diz: “Vamos sair, mas é uma retirada honrosa, viu? Não precisa empurrar!”.

Enquanto fala, o exército americano bate em retirada, com o rabo entre as pernas.

Esse era o espírito da época. Mas Henfil também gozava a própria formação religiosa, travada e autoritária, que trazia como herança de Minas Gerais. Daí a dupla de frades, um o oposto do outro. Um baixinho, outro comprido. Um sádico e safado, o outro querendo dar uma de santarrão. Por isso, o frade Cumprido era sempre vítima do Baixim. O Cumprido diz que devemos amar a todos como irmãos. O baixinho reaparece com um mendigo sujo e malcheiroso e dá a ordem: “Abraça o irmão!”. Os Fradinhos tinham de ser dois. O alto representava as boas maneiras e os bons princípios, um verniz de civilidade que não aguentava grandes contrariedades da vida real. Já o baixinho era o instinto puro. Sádico, sensual e debochado. A tal ponto que, ao vê-lo feliz, o Cumprido já imagina com medo o que ele teria aprontado: “Internei a minha mãe no pronto-socorro público”.

Enfim, a crítica, sempre ligada nos problemas do País. Fossem os problemas macro, como a ditadura e a economia voltada para as classes ricas, ou suas consequências, como o mau atendimento nos hospitais, a carestia ou o desemprego, Henfil estava sempre de olho. Foi desses artistas ligados em seu tempo e com aguda consciência política do seu trabalho. É dele o slogan Diretas-Já para a campanha para as eleições presidenciais pelo voto popular em 1984. Como se sabe, a emenda das diretas não passou e o primeiro presidente civil após o golpe, Tancredo Neves, foi eleito pelo Colégio Eleitoral. Henfil morreria de aids em 1988, aos 43 anos, contaminado por uma das inúmeras transfusões de sangue tomadas para combater a hemofilia. De que lado estaria hoje? Difícil dizer e nunca é prudente falar em nome dos mortos. Mas por certo estaria espicaçando algum poderoso.

Arquivo Estado de Minas / Ivan Consenza de Souza (henfil@gloco.com)
(foto: Arquivo Estado de Minas / Ivan Consenza de Souza (henfil@gloco.com))

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