Incorporação de novas áreas no âmbito das leis de incentivo à cultura abre discussão no setor

Gastronomia, moda, design e jogos eletrônicos, entre outros, diluem as fronteiras tradicionais

por Sérgio Rodrigo Reis 08/09/2013 00:13

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Arte Alexandre
(foto: Arte Alexandre)

A aprovação pelo Ministério da Cultura de projetos de estilistas famosos, permitindo captação de recursos da lei federal de incentivo para promover desfiles em Paris, trouxe à cena discussões antigas, porém urgentes. Se até há pouco tempo o apoio do poder público se limitava às formas tradicionais de arte, como o cinema, música, teatro, artes plásticas e patrimônio, com as fronteiras do processo criativo cada vez mais tênues, os representantes de segmentos como a própria moda, o design, as artes digitais e a gastronomia passaram a lutar por oportunidades semelhantes. As recentes ações de inserção dessas áreas de fronteira, a despeito das polêmicas, trazem um debate necessário em relação às manifestações estéticas fora das áreas convencionalmente consolidadas. A hora parece ser de mudança.

O sociólogo Carlos Alberto Dória, autor do blog especializado em gastronomia e-Boca Livre, acha o conceito de cultura, conforme definido pelo Estado brasileiro, inclusive na Constituição Federal, anacrônico e incapaz de representar como a sociedade vê, hoje, essa esfera da vida social. Para ele, mesmo os argumentos da ministra da Cultura, Marta Suplicy, para acolher a moda nessa rubrica dos gastos públicos são anacrônicos. “Advogo um debate amplo, com participação de intelectuais e da universidade, para rever os limites legais. O Chile fez, há décadas, um esforço para estabelecer uma cartografia cultural, consultando inclusive a população para indicar o que é cultura. Os resultados foram surpreendentes. No Brasil, parece que só o ‘povo da cultura’ se preocupa com isso, pois diz respeito aos seus próprios rendimentos”, aponta.

As discussões sobre as dificuldades de inserção de outros segmentos da produção cultural nos mecanismos de fomento começam a adquirir proporção mais ampla em vários setores da sociedade. A universidade é exemplo, sobretudo quando se pensa em cursos que tentam abarcar manifestações como os jogos digitais. O professor do curso de cinema de animação e artes digitais da UFMG, Chico Marinho, acha necessário o debate. “Ainda falta uma discussão mais aberta. O caminho imaginado pelos ex-ministros da Cultura Gilberto Gil e, em seguida, Juca Ferreira, com a inclusão na pauta de outras formas de manifestações, trouxer desenvolvimento enorme e precisa ser retomado.” O professor tem consciência de que a discussão não é só do governo, mas de todos. “É simplista imaginar que é só problema do Ministério da Cultura. É um assunto presente no Brasil e em todo o mundo.”

Antes da discussão sobre políticas públicas para a área do design, Gustavo Greco acha necessário um amplo debate a ser feito sobre a própria disciplina em questão. “Acredito ser longo o caminho para que possa responder com certeza se o design está representado pelas políticas públicas, embora o governo procure, gradativamente, um entendimento sobre a importância e a participação na cultura e economia, abrindo espaço sempre que procurado.” Para ele, a sociedade brasileira tem pouco entendimento de que a sua atividade perdura aqui por mais de dois séculos, influenciando não só uma construção visual, mas uma percepção do uso e utilidade dos produtos. “O design encontra na cultura ingredientes para a sua atuação, influencia e é influenciado por uma construção coletiva. Mas o mais importante é que esteja no ambiente dos negócios, no qual ele é capaz de gerar valor, resultados, autonomia e desenvolvimento.”

Fomento federal

A demanda pela inclusão de segmentos considerados transversais é uma questão antiga no Ministério da Cultura. Existe desde 2010, quando ocorreu a apresentação do projeto de lei do Procultura. Abriu-se então a possibilidade do recebimento de propostas que efetivamente tratassem em seu objeto desses outros segmentos. Hoje há assentos desses setores nos colegiados, que são instrumentos de discussão das principais pautas das áreas técnico-artísticas (arte digital, moda, artesanato e design) e de patrimônio cultural do país na Comissão Nacional de Política Cultural.

Apesar disso, o tema é controverso até dentro do próprio governo. Prova é a recente decisão da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura de não liberar a autorização de estilistas brasileiros de captar recursos via Lei Rouanet para a produção de desfiles. A ministra, contrariando a decisão colegiada, deu parecer favorável concedendo a possibilidade de empresas financiarem apresentações na passarela, via renúncia fiscal, aos estilistas Alexandre Herchcovitch (R$ 2,6 milhões), Pedro Lourenço (R$ 2,8 milhões) e Ronaldo Fraga (R$ 2,1 milhões). “Os desfiles são memórias de um tempo no país e nós vemos como arte também. São milhares de fotógrafos e cinegrafistas que registram esses eventos. Isso é mídia espontânea do Brasil, num conceito positivo. Entendemos que os desfiles são exposições de arte do Brasil. Uma coleção de uma indústria não teria esse apoio. Não apoiamos a marca, apoiamos o conceito", explicou a ministra.

Estado e município

O debate em torno das fronteiras da produção cultural já provoca mudanças efetivas, inclusive, no poder público local. Em 2008, os projetos ligados à área da moda passaram a ser incluídos na Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais, porém, como subgrupo da área de artes visuais, segmento do qual faz parte ainda o design artístico, design de moda, fotografia, artes gráficas e a filatelia. A situação exemplifica como o poder público tem dificuldade em compreender e absorver manifestações que não se enquadram em conceitos convencionais e ainda como são agrupados em outras áreas para justificar a liberação de captação de recursos.

Natália Turcheti / Divulgação
"Cabem várias e sérias reflexões que não podem entrar na lógica pura e simples do mercado, mas da economia criativa", diz Leônidas Oliveira, presidente da Fundação Municipal de Cultura (foto: Natália Turcheti / Divulgação)


A gastronomia passa por situação parecida. A Lei Estadual incluiu no último edital os projetos de gastronomia na área de preservação e restauração do patrimônio material e imaterial, no qual estão presentes ainda os segmentos arquitetônico, paisagístico, arqueológico, folclore e artesanato. O superintendente de fomento e incentivo à cultura, Felipe Amado Leite, diz que, só depois do resultado do edital, previsto para dezembro, será possível mensurar ações na área da gastronomia. Já em relação à moda e ao design, informa que as duas áreas não são representativas, tanto em termos de valor monetário quanto referente à captação. “O mecanismo de incentivo a estas áreas está disponível para a sociedade mineira, estando então a seu critério a decisão de utilizá-lo”, explica superintendente.

O debate na Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte, sobretudo relacionado às políticas públicas, também já tem história e começa a produzir resultados. “A inclusão no Plano Municipal de Cultura dos jogos digitais e a recente abertura do Centro de Referência da Moda são resultados desse debate, mas ainda é preciso implementar mais ações de fomento”, salienta o presidente da fundação, Leônidas Oliveira. Antes disso, o gestor considera necessário buscar um equilíbrio conceitual do fomento, centrado por um lado na preservação dos modos de fazer constitutivos da memória e, por outro, no avanço próprio do tempo, do entendimento e atendimento à contemporaneidade. “Cabem várias e sérias reflexões que não podem entrar na lógica pura e simples do mercado, mas da economia criativa como forma de sustentabilidade”, salienta Leônidas.

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