Brasil comemora os 90 anos da Semana de 22, que contou com a presença da pintora mineira Zina Aita

Os jovens da pacata Belo Horizonte deram valiosa contribuição ao movimento

por Ângela Faria 13/02/2012 09:41

INFORMAÇÕES PESSOAIS:

RECOMENDAR PARA:

INFORMAÇÕES PESSOAIS:

CORREÇÃO:

Preencha todos os campos.
C/Arte/reprodução
Retrato, o quadro de Zina Aita que provocou polêmica em BH dois anos antes da Semana de Arte Moderna (foto: C/Arte/reprodução)
 
Em 13 de fevereiro de 1922, uma garota belo-horizontina ajudou a fazer história. Tereza Aita estava entre os artistas plásticos, intelectuais e escritores que chocaram o Brasil ao pregar a ruptura com o passado durante a Semana de Arte Moderna, cujos 90 anos se comemoram hoje. Ali nascia a concepção do que chamamos hoje de cultura brasileira.

Zina Aita tinha pouco mais de 20 anos. Seu quadro – um grupo de trabalhadores na labuta, sob a imensa e opressiva sombra do feitor – foi exposto pertinho das obras de Di Cavalcanti e de Anita Malfatti. A única mineira naquele ninho modernista acabou praticamente esquecida. Filha de empresário italiano, Tereza nasceu em 1900, passou a adolescência em BH, estudou na terra do pai e para lá voltou em 1924. Morreu em Nápoles, aos 67 anos.

A qualidade do trabalho daquela jovem chamou a atenção do pioneiro modernista Yan de Almeida Prado, que anos depois criticaria a Semana de 22. Os estudos na Europa a ligaram à efervescência das vanguardas, a Manuel Bandeira e a Anita Malfatti. Zina é a prova de que ares futuristas – ou, quem sabe, pré-modernistas – chegavam também a cidades provincianas, não apenas à São Paulo dos endinheirados ou ao Rio de Janeiro, capital do país.

Dois anos antes da Semana de 22, a moça cosmopolita gerava polêmica na conservadora BH, que estranhou sua exposição de pinturas no Conselho Deliberativo, na esquina de Rua da Bahia com Av. Augusto de Lima. Um dos quadros, Retrato, trazia, em cores fortes, o rosto de um garoto. Caçoaram da moça. A imprensa ressaltou-lhe a originalidade, mas a acusou de usar cores “bizarras” para “ferir” a vista do público.

Zina explicitava ali o confronto entre tradição e modernidade. Não se tratava mais de imitar a realidade, mas de convidar o espectador a mergulhar em outra experiência estética. Recusando harmonias cromáticas tradicionais, a jovem artista inovou, ressalta a pesquisadora Ivone Luzia Vieira, doutora em artes plásticas e professora aposentada da UFMG.

A pintura de Zina traz influências fauvistas, futuristas e, sobretudo, algo caro ao modernismo: a relação dialética entre modernidade e tradição. O emprego do vermelho, por exemplo, a aproxima da arte de Mestre Ataíde, gênio do século 18 que marca presença em igrejas de Ouro Preto, lembra Ivone Luzia. Zina Aita passou longe da fama, mas não teve presença apenas episódica no cenário cultural, garante a pesquisadora mineira. Pioneira, “sua arte revela a insatisfação com o academicismo, o desejo de inovar por meio do processo dialético entre o eterno e o fugaz”, diz Ivone. Em 1924, quando a jovem pintora embarcava definitivamente para a Itália, BH já respirava brisas futuristas, embora a Semana de 22 não tivesse causado aqui o impacto provocado na Pauliceia.

No início da década de 1920, o chamado pré-modernismo já se fazia sentir no romance em folhetins O capote do guarda, publicado na imprensa belo-horizontina. Entre seus vários autores estavam Milton Campos – que posteriormente trocaria as letras pela política – e Aníbal Machado. Jovens inquietos respiravam arte, seja no palacete da culta família Vivacqua, no Café Estrela – que deu origem ao grupo de intelectuais batizado com seu nome – ou na Livraria Francisco Alves. Lá, Pedro Nava, Abgar Renault, Emílio Moura e muitos outros esperavam ansiosamente a abertura de caixotes com as novidades vindas do Rio e da Europa.

No livro O desatino da rapaziada, o jornalista Humberto Werneck comenta que, até então, a moçada “brincava de modernista”. Os jovens futuristas vaiavam políticos, invadiam cemitérios e chocavam a tradicional família mineira. Porém, a “brincadeira” ficou séria em 1924, depois do contato deles com Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e o poeta franco-suíço Blaise Cendrars – a caravana modernista que desembarcou nas cidades históricas mineiras. Mário passou a se corresponder com os rapazes, sugeria caminhos e dava preciosos conselhos a Carlos Drummond de Andrade. Oswald inspirava a ousadia. A partir dali surgiu A revista (1925), trincheira modernista precedida apenas pela paulistana Klaxon e a carioca Estética.

Em 1928, Carlos Drummond chocou o país com o poema “No meio do caminho”, publicado na Revista de Antropofagia, de Oswald, dois anos antes de Alguma poesia, livro de estreia do itabirano, chegar às estantes. Desenhista talentoso, Pedro Nava chegou a criar ilustrações para a obra-prima Macunaíma, de Mário de Andrade. O escritor adorou, revelou o autor a Ivone Luzia Vieira. Entretanto, a edição não trouxe os desenhos. 

CATAGUASES
O furacão modernista varreu o interior mineiro. Em 1927, surgiu em Cataguases a revista Verde – xodó de Mário e Oswald –, comandada por Rosário Fusco, Guilhermino César, Francisco Ignácio Peixoto e Enrique Resende. Foram apenas seis números, mas antológicos. Os “verdes” publicaram até poema a quatro mãos assinado por Oswald e Mário, que brigaram em 1929. Em 1927, em Itanhandu, nasce outra revista: Electrica.

Depois da pioneira performance de Zina Aita em 1920, a capital mineira assistiu à progressiva renovação nas artes visuais. Em 1936, no Bar Brasil, realiza-se a primeira coletiva de arte moderna da cidade. Destacam-se nomes como Monsã (Domingos Xavier de Andrade), Érico de Paula, Jeanne Milde, Delpinio Júnior, Julius Kaukal e Fernando Pierucetti. Em vez de obras bem-comportadas, veem-se mulatas em animados bate-coxas, miseráveis pelas ruas, jornaleiros dormindo na sarjeta, moça presa em flagrante policial e novidades estéticas alinhadas às vanguardas.
 
A semana paulista 
 
“Enfundando os papos,/ Saem da penumbra,/ Aos pulos, os sapos,/ A luz os deslumbra”. Assim começa o poema “Os sapos”, de Manuel Bandeira, motivo de alvoroço entre a ilustre plateia do Teatro Municipal de São Paulo, que há exatos 90 anos sediou a Semana de Arte Moderna. Em 13, 15 e 17 de fevereiro, artistas patrocinados pela burguesia paulista não se acanharam em chocar boa parte de seus mecenas, rompendo coletivamente com a arte acadêmica e o tradicionalismo.

O planeta mudava rapidamente nas primeiras décadas do século 20: guerra mundial, crise social, emergência das esquerdas e o império das máquinas e da velocidade prenunciavam novos tempos. O Brasil oligárquico e rural era sacudido pela Revolta dos Tenentes e a criação do Partido Comunista. Jovens artistas e intelectuais brasileiros – profundamente ligados à cultura europeia – alinhavam-se às vanguardas do Primeiro Mundo, atentos ao cubismo, dadaísmo, expressionismo e ao futurismo.

A Semana de 22 reuniu nomes emblemáticos da cultura brasileira: Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Heitor Villa-Lobos e Victor Brecheret, entre muitos outros. Dezenas de artistas apresentaram cerca de 100 obras, três sessões literomusicais foram programadas, algumas encerradas sob estrondosas vaias. Na verdade, ali se reuniam propostas estéticas desenvolvidas há tempos por jovens criadores. Em 1917, quadros de Anita Malfatti foram execrados por Monteiro Lobato. Décadas depois, aquele movimento ecoaria na revolução arquitetônica de Oscar Niemeyer e no tropicalismo de Gilberto Gil e Caetano Veloso.

A centelha de 22 se alastrou pelo país. Gerou publicações culturais (Klaxon, Revista de Antropofagia, Estética e Paratodos); livros seminais como Pauliceia desvairada e Macunaíma (Mário de Andrade), Cobra Norato (Raul Bopp), Alguma poesia (Carlos Drummond de Andrade), O rei da vela, Pau-Brasil e Manifesto antropófago (Oswald de Andrade). Tarsila do Amaral não participou da Semana. Chegou meses depois da Europa e pintou Abaporu (1928), ícone modernista que atualmente pertence a colecionador argentino.
 
Semana mineira
Enquanto São Paulo tornou célebre a Semana de 1922, Minas Gerais teve a sua “Semana de 24”. Aleijadinho fez a cabeça dos gurus modernistas, que “redescobriram” o Brasil ao visitar em caravana São João del-Rei, Tiradentes e Ouro Preto, entre outras cidades históricas do estado, num abril dedicado às celebrações da paixão de Cristo.
 
Se em 1922, intelectuais, artistas e escritores romperam com o conservadorismo, o academicismo e o “passadismo” – seguindo o firme propósito de valorizar a independência cultural do Brasil –, em 1924, as cidades barrocas mineiras foram o palco do dialético encontro dos modernistas com a tradição.
 
Na Europa, as vanguardas beberam na fonte da arte africana. No Brasil, Oswald, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral se inspiraram em Aleijadinho, Mestre Ataíde e outros nomes da arte colonial. Aqueles homens do século 18, à sua maneira, também souberam “reciclar” as influências da cultura europeia, criando arquitetura, pintura e escultura marcadas pela realidade brasileira. Eles não se limitaram a copiar.
 
Eneida Maria de Souza, professora de literatura da Universidade Federal de Minas Gerais, concorda com a tese de que a caravana de 1924 representou algo tão emblemático para o modernismo quanto 1922. O elemento nacional ganhou novo vigor, destaca ela. A pesquisadora Ivone Luzia Vieira ressalta o impacto da viagem mineira na obra de Tarsila do Amaral. Dos detalhes das igrejas e da cor da vestimenta dos santos às delicadas pinturas de baús domésticos, nada escapou à pintora. O elemento mulato – concordam as duas especialistas – foi evidenciado por Minas.
 
Forjou-se aqui uma das vitórias do modernismo: a defesa do patrimônio histórico e artístico nacional. Isso ganharia corpo alguns anos mais tarde, quando o mineiro Gustavo Capanema passou a comandar o Ministério da Educação – convocou para sua equipe Mário de Andrade, Drummond e Rodrigo Mello Franco de Andrade. O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi criado em janeiro de 1937.

Eco Para Eneida Maria de Souza, a revolução cultural proposta há 90 anos ecoa profundamente na produção atual. Ela chama a atenção para a crítica ao elitismo, à linguagem empolada e à hegemonia da chamada “alta cultura”. Quebraram-se dogmas, aponta a professora, pois houve importante conquista de espaço por parte das mulheres, dos gays e dos negros no campo da arte.
 
“Mas, o grande lance do modernismo foi a antropofagia”, destaca ela, referindo-se à metáfora do canibalismo cultural: digerem-se modelos e experiências estéticas estrangeiros para reelaborá-los com vistas a produzir algo original, marcado pela brasilidade. Foi assim na tropicália, nos anos 1960, e tem sido assim no rap, atualmente.
 
Para a pesquisadora Ivone Luzia, a destruição de dogmas e o compromisso de construir o novo ficaram como importantes heranças modernistas para este século 21. 


MAIS SOBRE E-MAIS