'Pieces of a woman' chega à Netflix de olho em indicações ao Oscar

Drama sobre a perda de um bebê recém-nascido, filme examina os processos de luto e as relações familiares e é baseado em experiência do diretor e da roteirista

Mariana Peixoto 07/01/2021 04:00
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Vanessa Kirby e Shia LaBeouf vivem o casal do longa. Recentemente acusado de abuso, ator não participa da divulgação do filme (foto: NETFLIX/DIVULGAÇÃO)
A produção contemporânea de cinema tem se esmerado em planos-sequência, que fazem com que o espectador assista com um olhar quase voyeurístico a uma ação incessante. O exemplo mais recente é 1917 (2019), o épico de guerra de duas horas filmadas como se fossem em um único plano, com grandes cenas panorâmicas.

Pieces of a woman, primeiro longa-metragem em inglês do cineasta húngaro Kornél Mundruczó, que estreia nesta quinta (7/1), na Netflix, também é aberto com um plano-sequência. Mas, aqui, o viés é íntimo, já que se trata de um único ambiente, a residência de um casal. 

Sala, banheiro e quarto, apenas, durante 24 minutos, sem cortes e difíceis de assistir. Mas, ao mesmo tempo, não conseguimos tirar os olhos do que se passa com as três personagens. Participamos, com silenciosa aflição, do suplício de Martha (Vanessa Kirby), que decidiu ter sua primeira filha em casa, ao lado do marido, Sean (Shia LaBeouf), e da doula Eva (Molly Parker).

E assim seguimos os passos das contrações com intervalos cada vez menores, da bolsa arrebentada, da descoberta de que a doula escolhida não poderia participar, por isso outra seria enviada, dos batimentos do coração do bebê, da dor excruciante de Martha, sozinha na banheira, do parto difícil, e da alegria logo tornada tragédia. 

É a morte do bebê que vai desencadear a história desse longa sobre a dor e o luto de um casal, o que não demora a esfacelar uma família.
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Ellen Burstyn vive a autoritária mãe da protagonista e sua relação com a filha é parte importante da trama (foto: NETFLIX/DIVULGAÇÃO)

MELHOR ATRIZ 

Com Martin Scorsese como produtor-executivo, Pieces of a woman teve première em setembro passado, no Festival de Cinema de Veneza, que deu a Vanessa Kirby o prêmio de melhor atriz. A intérprete britânica de 32 anos, até então conhecida do grande público como a princesa Margaret na primeira fase da série The crown, é uma das apostas para o Oscar 2021.

A campanha da Netflix para a temporada de premiações do cinema sofreu um baque recente. Em 11 de dezembro último, a cantora britânica FKA Twigs, que namorou Shia LaBeouf entre 2018 e 2019, entrou com um processo contra o ator em Los Angeles por agressão e assédio sexual. Twigs relatou que LaBeouf tentou estrangulá-la enquanto ela dormia e que “conscientemente” passou uma doença sexualmente transmissível a ela.

Ao The New York Times, o ator americano afirmou: "Tenho sido abusivo comigo mesmo e com todos ao meu redor há anos. Tenho um histórico de ferir as pessoas mais próximas de mim. Tenho vergonha dessa história e sinto muito por aqueles que magoei. Não há mais nada que eu possa dizer."

A campanha de lançamento de Pieces of a woman tenta minimizar a participação de LaBeouf, coprotagonista da história. O ator não está participando das entrevistas de divulgação do filme e sua imagem não foi incluída no cartaz promocional, que focou apenas em Vanessa Kirby, na reprodução de uma cena entre ambos. 

Na sessão virtual de perguntas e respostas de que o Estado de Minas participou na tarde de quarta (6/1), o nome de LaBeouf não foi mencionado. Kirby, até o momento, só enviou um posicionamento, em nota publicada no The Times, de Londres. A atriz afirmou que "está com todas as sobreviventes de abuso" e que respeita a "coragem de qualquer um que diga sua verdade". Também disse que "em relação às notícias recentes", não pode "comentar sobre um processo legal em andamento".

Pieces of a woman é um projeto pessoal de Kornél Mundruczó e sua mulher, a roteirista Kata Wéber. Até então, os dois haviam feito juntos os filmes húngaros Deus branco (2014, vencedor da mostra Um Certo Olhar, em Cannes) e Lua de Júpiter (2017), ambos com direção dele e roteiro dela. A narrativa nasceu de uma perda pessoal do casal de realizadores.

“Eu passei por uma história similar, mas não comparável com a do filme. Hesitei em dividir a experiência sobre um aborto, mas foi quase uma terapia. (A perda de um filho) Não é algo de que se fala muito, e o ato de quebrar esse silêncio teve um aspecto de cura. Eu não estava escrevendo somente sobre a perda, mas falando também de amor e de como uma pessoa pode se fortalecer. Eu me surpreendi com as mulheres com quem conversei, pois todas me falaram do legado de seus filhos”, afirmou Kata Wéber.

Kornél Mundruczó explicou que rodou o plano-sequência (que, na verdade, ficou ainda maior do que a versão editada no longa) no primeiro dia de filmagem. “O que está no filme é o quarto take. Imaginei a sequência como a de um filme de ação. Você planeja, planeja, planeja. Dividimos a cena como se fossem capítulos. Mas não fomos ao ensaio muito a fundo, pois ficamos com medo de perder o espírito da coisa na hora de rodar. No final, foi como um milagre, pois conseguimos fazer a sequência com liberdade e espontaneidade.”
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Já premiada em Veneza, Vanessa Kirby é apontada como provável indicada ao Oscar  (foto: NETFLIX/DIVULGAÇÃO)

FORTE 
Vanessa Kirby, que nunca passou pela experiência de um parto, viu em Martha a chance de fazer uma personagem com o peso que ela queria. Ao saber do papel, a atriz viajou de Londres para Budapeste para conhecer o casal.

“Li o roteiro em uma hora. De repente, me senti tão forte com aquela história. E percebi que nunca tinha visto o nascimento no cinema filmado daquela maneira. Senti que era importante fazer o filme, mas, ao mesmo tempo, tive medo. É aterrorizante você tentar representar a experiência de alguém que perde um filho”, disse a atriz, que conversou com várias mulheres que passaram por situação semelhante e chegou a assistir um parto.

O drama é ambientado em Boston porque, na opinião de Mundruczó, a metrópole norte-americana consegue unir o conservadorismo e o liberalismo. “É impossível imaginar essa história na Alemanha, na Escandinávia. Achei mais fácil imaginá-la nos EUA, pois esse embate é mais real. Boston tem uma população judaica intelectualizada, e é uma cidade muito conservadora.”

Martha é filha de Elizabeth (Ellen Burstyn), que, quando criança, sofreu com a perseguição aos judeus. A questão permeia seu difícil relacionamento com a mãe, uma mulher autoritária que nasceu em um parto solitário durante a ocupação nazista. Na visão de Elizabeth, embora ela não a explicite, a perda do bebê é um fracasso de Martha. 

Com performances em alta combustão, as duas mulheres se digladiam em cena. “Elizabeth não entende que a filha tem que lidar com o luto à maneira dela, e não da maneira que ela aprova”, comentou Burstyn. 

“O problema da Martha não é com o marido, mas com a mãe”, acrescentou Mundruczó. Em um embate com Martha, a personagem de Burstyn protagoniza um monólogo memorável. “Ele foi sendo transformado, reescrito, e sabíamos que era um momento importante do filme. Quando finalmente chegamos a ele, foi mágico. De vez em quando, você começa a fazer uma cena e alguma coisa acontece. Você deixa de fazer a cena e ela começa a se fazer sozinha. São momentos que não dão para prever quando acontecem, mas fico feliz quando eles chegam”, comentou Burstyn.

O filme vai mostrando o luto em diferentes formas. O de Martha é solitário. Ao não conseguir dividir sua dor com ninguém, tampouco com o marido, ela passa a se afastar de todos. Ao mesmo tempo em que sofre, tenta voltar à normalidade. Choca os companheiros de trabalho ao retornar para o escritório poucos dias depois do parto, ainda que a blusa molhada de leite seja a tradução da situação que ela está vivendo.

Impossibilitado de se comunicar com a mulher, Sean retorna aos velhos hábitos, buscando no abuso de álcool e drogas um escape. E Elizabeth, com a maneira de quem já viu de tudo, tenta reparar a tragédia por meio de um processo jurídico contra a doula. Não há respostas prontas, tampouco um caminho fácil, é o que a narrativa vai descortinando com um roteiro engenhoso que, em momento algum, resvala para o melodrama.

PIECES OF A WOMAN
De: Kornél Mundruczó. Com Vanessa Kirby, Shia LaBeouf e Ellen Burstyn. O filme estreia nesta quinta (7/1), na Netflix.

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