Longa 'Macabro' aborda racismo em história de assassinos seriais

Filme de Marcos Prado estreia nesta terça (29/12) e levanta a hipótese da condenação injusta de um dos 'irmãos necrófilos' de Nova Friburgo

Pedro Galvão 29/12/2020 04:00
Pandora Filmes/Divulgação
Episódio real ocorrido em Nova Friburgo, nos anos 1990, é a inspiração para o longa (foto: Pandora Filmes/Divulgação )
No começo dos anos 1990, uma onda de crimes bárbaros na região de Nova Friburgo, na Serra Fluminense, chocou o Brasil. Foram pelo menos nove assassinatos brutais, seguidos de necrofilia, atribuídos a dois irmãos, que passaram anos foragidos na zona rural, mobilizando uma numerosa equipe do Batalhão de Operações Especiais (Bope) para encontrá-los e alimentando o imaginário popular e o noticiário, que atribuía até certo misticismo aos fatos.

Uma história suficientemente intrigante para virar filme de suspense. Macabro, de Marcos Prado, que chega nesta terça-feira (29/12) às plataformas de streaming, amplia a trama policial com uma história que envolve também aspectos da injustiça social e do racismo estrutural presentes na história do Brasil.

A ideia de um longa-metragem inspirado no caso dos chamados “irmãos necrófilos” surgiu em 2009, quando Prado, sócio do diretor José Padilha na produtora Zazen Filmes, conversou com o ex-capitão do Bope Rodrigo Pimentel sobre o caso. 

Pimentel é autor do livro A elite da tropa e foi sua experiência no Bope que originou o filme Tropa de elite, dirigido por Padilha e produzido por Prado. A ideia original de Macabro tomou novo rumo quando o advogado de Henrique de Oliveira, um dos irmãos, entrou em contato com o diretor, assim que soube da produção. 

"Henrique pegou quase 50 anos de prisão sem prova nenhuma. Havia factuais, havia testemunhas, o outro irmão (Ibraim de Oliveira) foi morto por um oficial do Bope, mas ninguém viu o Henrique nas cenas dos crimes”, diz Prado.

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Trama envolve aspectos de misticismo explorados pelo noticiário da época (foto: Pandora Filmes/Divulgação )

O diretor conta que o advogado de Henrique, que está cumprindo sua pena na prisão, argumenta que o cliente foi condenado injustamente. “Então pesquisamos os autos do processo e, dos nove assassinatos, três estão na conta dele. Mas dois sem nenhuma prova, e o terceiro baseado na mudança de depoimento de uma vítima que sobreviveu a um ataque."

Segundo Prado, a hipótese de que tenha havido uma condenação injusta é um de vários elementos que se juntam em torno de uma história por si só já bastante complexa

"Há o feminicídio, a questão da violência policial e essa história paralela na cidade, retratada no filme como uma cidade de brancos. Claro que há uma dramaturgia, mas, se pegarmos um paralelo da nossa sociedade e o colocarmos nesse microcosmos, está tudo acontecendo ali: crimes bárbaros, racismo, Justiça e suas contradições", diz Prado.

O diretor salienta que a trama do filme é apenas inspirada no caso, e não totalmente baseada nele. Nesse processo de construção dramatúrgica, o protagonista foi inspirado em vários oficiais do Bope, inclusive em um que foi, de fato, designado para a missão, por ser de Nova Friburgo. 

No filme, ele se chama Theo, um sargento que seria julgado pelo assassinato de um morador de favela em um erro de operação e por isso é enviado para a missão. Não só por conhecer a região, onde nasceu, mas para "limpar a própria barra". 

Esse tipo de contradição na atividade policial é outra pincelada que o longa dá sobre nosso caos social. Theo é interpretado por Renato Góes, que assume um personagem atordoado pelos reencontros ocasionados pelas circunstâncias da investigação e por seus erros no passado, mas dedicado a compreender a complexidade do caso. Tanto é assim que ele passa boa parte do filme fazendo perguntas aos moradores locais. 

PRECONCEITO 

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Protagonista é um policial do Bope designado para a investigação como forma de limpar seu currículo (foto: Pandora Filmes/Divulgação )

Acompanhado pelo cabo Everson (Guilherme Ferraz), que observa ser o único negro no povoado onde os crimes se passam, além dos dois irmãos procurados, ele encontra uma população apavorada, mas extremamente preconceituosa. 

À medida em que tenta encontrar os assassinos, que continuam fazendo suas vítimas de maneira cruel, Theo passa a entender como os jovens, de origem pobre, eram tratados pelos habitantes, antes de começarem a cometer os crimes. 

Com inspiração direta em relatos jornalísticos reais da época, os jovens eram apontados como "mancomunados com o diabo", e a família deles tratada como "macumbeiros" e outros adjetivos tipicamente racistas. 

Marcos Prado afirma que, embora os fatos que inspiraram o filme tenham ocorrido há quase 30 anos, eles se conectam com o contexto atual. "Lá atrás, não estávamos tão atentos ao racismo estrutural. Mas somos estruturalmente racistas desde sempre. Por isso resolvemos pontuar que eram dois jovens negros, descendentes de escravos, numa região que recebeu muitos imigrantes e onde havia o maior traficante de escravos do Brasil. Por lá havia um dos maiores quilombos do país, que, segundo uma pesquisa que consultamos, desapareceu em sete anos. Claro que o racismo está no Brasil inteiro, mas é uma região que tinha esses ingredientes." 

Ainda que a história apresente aspectos sobre o que levava os dois jovens a praticar crimes tão cruéis, a narrativa se dá a partir da perspectiva do protagonista, que é um policial. Os dois irmãos, que no filme se chamam Matias e Inácio e são interpretados por Diego Francisco e Eduardo Tomaz, pouco aparecem. 

"Pegamos todos esses elementos e fomos construindo. É a história de um anti-herói, que tem uma segunda chance e nos permite pensar que ele é péssimo, porque matou um homem inocente na favela. Porém, sai com uma questão moral, à medida em que vai reencontrando os próprios fantasmas do passado. É perigoso tratar de tantos assuntos, mas, como gênero cinematográfico, podemos dar uma exagerada", diz o diretor. 

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Diretor do filme estudou o processo que levou à condenação de um dos acusados a quase 50 anos de prisão (foto: Pandora Filmes/Divulgação )

Para o cineasta, que anteriormente dirigiu o premiado documentário Estamira (2004), além de Paraísos artificiais (2012), seria muito simplista o entendimento de que os dois irmãos agiam assim apenas por serem maltratados. "Giramos o prisma, fomos juntando elementos, alguns que nem seriam da história real deles, e dividimos a responsabilidade. Botamos uma lente de aumento nesse microcosmos para ver o que acontece aqui fora. É um filme de gênero assumido, um thriller psicológico de suspense, com liberdade para extrapolar a situação e assumir essa linguagem, lembrando de um homem preso que pode ser inocente ou não, a partir da história desse anti-herói", define. 

Macabro será lançado nesta terça-feira (29/12) nas plataformas Net Now, VivoPlay, Looke, Itunes, Microsoft e GooglePlay. O filme foi exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no Festival Internacional de Cinema do Rio e recebeu prêmios em dois festivais internacionais. No de Austin, no Texas, foi eleito melhor filme na categoria Dark Matters, dedicada a temas densos. Do Brooklyn Film Festival, levou o prêmio do júri popular. O longa chegou a ser exibido em algumas capitais brasileiras durante a pandemia do novo coronavírus, no formato drive-in, antes de finalmente chegar ao circuito comercial amplo, via streaming. 

MACABRO
De Marcos Prado. Com Renato Góes, Diego Francisco e Eduardo Tomaz. Nas plataformas Net Now, VivoPlay, Looke, Itunes, Microsoft e GooglePlay, a partir de hoje.

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