Documentário analisa caos político a partir das Jornadas de Junho

'O mês que não terminou' tem narração de Fernanda Torres e estreia nesta sexta (19) na TV. Direção é de Francisco Bosco e Raul Mourão

Mariana Peixoto 19/06/2020 07:46
CANAL CURTA!/DIVULGAÇÃO
As manifestações populares que tomaram as ruas do Brasil em junho de 2013 são o ponto de partida do filme, narrado pela atriz Fernanda Torres (foto: CANAL CURTA!/DIVULGAÇÃO)
Qual é a sua opinião sobre as manifestações de junho de 2013? Ao longo dos sete anos desde as passeatas que tomaram as ruas de todo o Brasil, inicialmente como uma reação ao aumento nas tarifas de transporte público, profissionais de distintas áreas, como documentaristas, historiadores e sociólogos, tentam compreender o significado não apenas das chamadas Jornadas de Junho, mas sobretudo seus desdobramentos.

O cinema vem produzindo vasto material sobre o tema. O mês que não terminou, que estreia nesta sexta-feira (19), às 22h, no canal Curta!, também faz das Jornadas de Junho o centro de suas reflexões. O filme acompanha, a partir das manifestações, o Brasil dos últimos anos, com o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, a Operação Lava-Jato e a ascensão da extrema-direita, que culminou com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

O que o documentário de Francisco Bosco e Raul Mourão tem a acrescentar ao debate é precisamente o que vem impedindo que ele ocorra em algumas esferas: a discussão para além da polarização política, que, não raro, vira uma “briga de surdos”.

Bosco, respeitado ensaísta que não se furta a colocar o dedo em feridas das quais outros se abstêm – vide o livro A vítima tem sempre razão? (Todavia, 2017), no qual analisa as estratégias de confronto adotadas pelos ativistas das pautas identitárias na história recente do país –, procurou, no filme, também traçar o mesmo caminho. O documentário surgiu do artigo Junho de 13 foi de sonho democrático a pesadelo autoritário, publicado há dois anos, na Folha de S.Paulo.

No aspecto formal, O mês que não terminou é convencional, unindo entrevistas, imagens de arquivo e narração em off (a cargo da atriz Fernanda Torres). No entanto, além das imagens documentais, o filme traz também trabalhos de artistas contemporâneos. Fora vídeos de sua própria autoria, o codiretor Raul Mourão selecionou obras de outros nomes – Nuno Ramos, Cao Guimarães e Lenora de Barros entre eles – que ganham um novo significado de acordo com o que o filme apresenta.

“Me interessava fazer um filme político, que tivesse uma dimensão verbal, interpretando o conjunto de acontecimentos históricos recentes e que, ao mesmo tempo, mostrasse a história contemporânea de uma maneira conceitual, da arte”, afirma Bosco.

Bel Pedrosa/Divulgação
(foto: Bel Pedrosa/Divulgação)
ESPECIALISTAS 

Como o ensaísta é um homem da palavra, ela faz toda a diferença no documentário. Além do texto em off reflexivo, que vai muito além de descrever o que é visto na tela, o filme reúne um time de especialistas – economistas, jornalistas, cientistas políticos – que habitam diferentes universos.

“Escolhi pessoas que representavam, em diversos aspectos, o processo até a eleição de Bolsonaro”, diz ele. Entre eles estão o filósofo e professor Pablo Ortellado (coautor de Vinte centavos: a luta contra o aumento), o cientista Marcos Nobre (autor de Choque de democracia e Imobilismo em movimento – Da abertura democrática ao governo Dilma), os economistas Laura Barbosa de Carvalho, Marcos Lisboa e Samuel Pessôa – ela, de vertente heterodoxa, de esquerda; eles, liberais – o jornalista Reinaldo Azevedo, e a psicanalista Maria Rita Kehl.

“Acho importante dizer que não acredito em neutralidade em política e em nada. Jamais tive a ingenuidade de fazer um filme neutro. É um filme de centro-esquerda, que representa a minha perspectiva de mundo. Procurei fazer um filme que correspondesse à perspectiva política que acredito ser mais complexa do que as que estão ostensivamente dominando o debate público no Brasil”, afirma o diretor.

Bosco salienta que, para uma pessoa ser de esquerda, ela não precisa considerar a “direita um demônio”. Tampouco um direitista tem que achar que esquerdista é “comunista, comedor de criancinha”. Bosco comenta que quis fazer um “filme complexo”. Neste caminho, ele se deparou justamente com a recepção extremada.

Quando O mês que não terminou foi exibido em 2019, no Festival de Cinema de Brasília, recebeu aplausos e vaias. Bosco saiu dali, ele se recorda, sendo xingado “de liberal e até de fascista”. “Este filme tende a causar dificuldade nas pessoas que têm o espírito militante.”

O ensaísta afirma que, no papel de intelectual público, ele sempre manteve o espírito diplomático. Mais recentemente, tornou-se polêmico. “Hoje, sou considerado controverso e apanho dos dois lados. Isso revela mais da natureza do debate do que da minha própria. Não tenho vocação para polemista, mas acabei me tornando um.”

Mais importante do que o Fla-Flu é reconhecer o outro lado. “Se você comparar o artigo que deu origem ao filme e o próprio filme, vê uma diferença enorme. E ela surgiu no processo de realização. Quando tomei a decisão de escutar alguns intelectuais que não pertencem aos diversos setores da esquerda, já no meu estudo pessoal eu tinha entrado em um processo de aprofundamento do campo da direita. Com o filme, este processo se acentua muito. Então, ele teve a dimensão da transformação de uma pessoa, por conta do contato com argumentos que não estava acostumado a ouvir.”

Na opinião de Bosco, a polarização que domina o Brasil de hoje deve ser entendida em um sentido rigoroso e estrito. “Não é o que aconteceu com os governos do PSDB e do PT, em que você tinha um mínimo denominador comum de respeito à Constituição e uma relação mais de continuidade do que de ruptura. O que chamamos de polarização hoje envolve a formação de grupos identitários muito entrincheirados na política, na ideologia, o que faz com que um demonize o outro. Isso fez com que hoje haja uma divisão social que provavelmente o país nunca conheceu”, conclui.

O MÊS QUE NÃO TERMINOU
O documentário de Francisco Bosco e Raul Mourão estreia nesta sexta (19), às 22h, no canal Curta!.  Às 20h, Bosco participa de live sobre o filme no Instagram do site Papo de Cinema (@papodecinema).

Plataforma do Sesc libera documentários

Mantaray Film/DIVULGAÇÃO
Com imagens e textos particulares da atriz, Eu sou Ingrid Bergman traça um perfil íntimo da musa do cinema (foto: Mantaray Film/DIVULGAÇÃO)
Durante a quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus, o Sesc São Paulo está disponibilizando, gratuitamente, uma série de filmes via plataforma Sesc Digital. A cada semana há novidades na programação, incluindo documentários.

Dois títulos conceituados foram acrescentados ao catálogo nesta quinta-feira (18). Eu sou Ingrid Bergman, produção sueca de 2015 dirigida por Stig Bjorkman, acompanha a vida da cultuada atriz, vencedora de três Oscars. Lançado no ano do centenário de nascimento da intérprete, reúne bastante material inédito, como entrevistas, cartas, diários e muitas imagens realizadas por ela durante toda a sua vida.

As memórias de Ingrid são narradas pela também atriz sueca Alicia Vikander, que lê trechos de diários e de muitas cartas que a estrela de Casablanca trocou com amigas. As mais íntimas são destinadas a Mollie, com quem ela divide uma lembrança dos percalços do início da carreira. “‘Você nunca será atriz. É alta demais’. E eu disse a mim mesma: ele não sabe nada sobre mim.”

Outro documentário em destaque na plataforma é o brasileiro Paulinho da Viola – Meu tempo é hoje (2013), de Izabel Jaguaribe. Com roteiro de Zuenir Ventura, o filme é um perfil afetivo do cantor, instrumentista e compositor.

Meu tempo é hoje mostra os mestres e amigos de Paulinho, suas influências musicais e percorre sua rotina dis- creta. Mas a grande revelação vem das reflexões do músico sobre um único tema: o tempo. Há ainda encontros musicais memoráveis com Marina Lima, Elton Medeiros, Zeca Pagodinho, Marisa Monte e a Velha Guarda da Portela.

Outros documentários nacionais disponíveis na plataforma são O homem da cabine (2009), de Cristiano Burlan, sobre projecionistas de cinema, e Jonas e o circo sem lona (2015), de Paula Gomes, sobre um garoto baiano que se apresenta em espetáculos circenses na região de Salvador.

SESC DIGITAL
Acesso gratuito pelo sescsp.org.br/cinemaemcasa (não é necessário cadastro).

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