Com selo de Cannes, Casa de Antiguidades denuncia o racismo

Filme de João Paulo Miranda traz Antônio Pitanga no papel de nordestino que enfrenta o preconceito racial no Sul do Brasil

Pedro Galvão 13/06/2020 06:00
Pandora Filmes/Divulgação
Antônio Pitanga vive Cristovam, vítima do preconceito e da invisibilidade ao trocar o Nordeste por uma cidade de Santa Catarina colonizada por austríacos (foto: Pandora Filmes/Divulgação)
 
 
Mesmo sem ser realizado em 2020, por causa da pandemia, o festival de Cannes poderá ser novamente o trampolim para um filme brasileiro ter ressonância mundial, depois do êxito de Bacurau e A vida invisível, ano passado. Embora tenha cancelado a edição presencial, prevista para maio, e descartado a possibilidade de exibir filmes por streaming, a tão aguardada lista de selecionados foi divulgada na última semana, incluindo Casa de Antiguidades, primeiro longa do paulista João Paulo Miranda, estrelado por Antônio Pitanga. Além do importante selo de Cannes, o filme promete levar uma mensagem visceral sobre o racismo, sob protagonismo notável do ator que acaba de completar 81 anos.

Cannes não é novidade para Pitanga,  que fez parte do elenco de O pagador de promessas, único filme nacional até hoje a levar a Palma de Ouro, em 1962. Porém, ele vê um sentido especial nesse novo trabalho. “Esse filme foi um presente que João Paulo Miranda me deu. Um ator com mais de 60 anos de carreira, negro, nordestino, vivendo um personagem com quem tenho enorme familiaridade, digo que esse filme é o Barravento de novo, mas em vez de Firmino Bispo dos Santos, sou Cristovam, um homem vítima do preconceito, da exploração, da invisibilidade, ao sair do Nordeste para tentar a vida numa cidade de Santa Catarina colonizada por austríacos. É uma trajetória de décadas, mas poderia ser Cristovam debaixo do joelho do policial branco nos Estados Unidos”, argumenta Antônio Pitanga, em referência a George Floyd, cujo brutal assassinato pela polícia de Minneapolis motivou onda mundial de protestos contra o racismo.

João Paulo Miranda, de 38 anos, que recebeu o Prêmio Especial do Júri em Cannes, em 2016, pelo curta A moça que dançou com o diabo, começou a desenvolver o roteiro de Casa de Antiguidades ainda em 2015. As gravações terminaram em 2019. O cineasta explica a trama como o enfrentamento entre o protagonista, que migra para o Sul em busca de trabalho, e um grupo ultraconservador que mora no local. Embora não o considere um filme de época, o diretor fala de uma ambiência nos anos 1970.

“É um grupo autoritário, militarizado, que lembra a ditadura. E há esse homem negro, que no roteiro nem é descrito assim, mas como um brasileiro cheio de marcas do tempo e um olhar profundo, que vai para esse Sul, não necessariamente de tal idade, mas o Pitanga caiu como uma luva. Sobretudo se pensarmos no momento atual, em que o governo e os conservadores podem pensar que os mais frágeis, os mais idosos, mais vulneráveis à COVID-19, são descartáveis. Trago um homem de 81 anos para enfrentar tudo isso, com muita força”, destaca Miranda, que caracteriza sua produção como “uma bomba”. “Arrisquei, me expus para construir uma coisa radical e profunda”, afirma.

Dedo na ferida

Aspiacci/J.Veiga/Divulgação
João Paulo Miranda defende o cinema como "arte para afrontar, impactar e incomodar" (foto: Aspiacci/J.Veiga/Divulgação)
Apesar da satisfação pela presença na seleção oficial de Cannes, que confere importantes credenciais a qualquer filme, mesmo que não haja premiação este ano, João Paulo diz que “não é momento de celebração, glamour ou festa”.

Segundo ele, “o cinema vem como arte para afrontar, impactar, incomodar e colocar o dedo na ferida. Remexer os buracos para nos reencontrarmos neste mundo perdido e caótico”.

Com os países europeus ensaiando a reabertura de espaços culturais, a expectativa é de que Casa de Antiguidades cumpra uma trajetória em festivais no continente no segundo semestre. Porém, a estreia comercial deve ficar para 2021.
 

“Também direi: Não consigo respirar”

A figura central de Casa de Antiguidades enaltece o caráter contestador da trama. “O Barravento tinha um link com Malcom X, Martin Luther King, os Panteras Negras. O Cristovam, no filme do João Paulo, é muito real, contundente. É um soco na boca do estômago. Parece que foi feito junto com a morte de George Floyd. E é isso que provoca o Cristovam, essa vontade que estamos vendo de sair todos juntos nas ruas, de mãos dadas, porque não aguentamos mais esse chicote que voa nas nossas costas desde que fomos sequestrados da África”, afirma Antônio Pitanga.

De acordo com o ator, o filme não é só atual, mas verdadeiro. “Um registro coerentes com a realidade que não estamos vivendo só em 2020. São décadas, séculos. Como Cristovam, eu também direi: Não consigo respirar”, comenta.

Independentemente da impossibilidade de um troféu em Cannes – cujo júri seria presidido por Spike Lee, dono de uma das filmografias mais importantes do mundo sobre racismo –, Pitanga acredita no alcance poderoso que Casa de Antiguidades deve ter.

"É uma trajetória de décadas, mas poderia ser Cristovam debaixo do joelho do policial branco nos Estados Unidos"

Antônio Pitanga, ator



“O mundo está conectado. O mundo não pode olhar com olho alienado. O mundo somos nós, o coletivo, a sociedade, essa coisa louca, desvairada, perdida, mas que no cinema, nas artes em geral, na cultura, tem esse instrumento socializador que é o arauto de qualquer sociedade. Nas artes plásticas, na poesia, na música, no teatro, é colocar o dedo na ferida e ser coerente com dias de hoje. Não se trata de uma obra distante de um genial cineasta. É uma obra que vai nas entranhas da humanidade e traz para o primeiro plano essa violência. Cannes é essa vitrine, como Berlim, Veneza, uma oportunidade para que esses filmes mostrem a obra, para depois serem vistas por todo mundo. Uma importância enorme, mesmo sem tapete vermelho. O filme já está consagrado”, opina Pitanga.

Em defesa do poder da cultura de promover transformações e questionar as injustiças sociais, o ator critica o governo Bolsonaro por sua relação conflituosa com o setor cultural. “A força da cultura vai além-mar. Nenhum governo teve a cultura como projeto, mas esse é pior, pois é fascista e ditador. A cultura incomoda, porque faz pessoas pensarem. Hoje não há nem sequer secretário de Cultura, a memória cultural deste país está prestes a acabar e implodir. Esperam que a pandemia aconteça, que a imprensa esteja preocupada com as vidas perdidas, para a boiada passar, como eles mesmo falam, para entregar o país”, protesta, lembrando ainda das dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores do setor, sobretudo os que não estão no estrelato.

Nesse sentido, ele destaca o projeto de lei de autoria da esposa, a deputada fede-ral Benedita da Silva (PT-RJ), que propõe renda emergencial para a classe artística, utilizando o Fundo Nacional da Cultura. Batizada de Lei Aldir Blanc, já está aprovada pelo Senado e aguarda sanção do presidente Jair Bolsonaro.

Esperança


Com 81 anos completados em 6 de junho, o ator acredita na resistência. “Com todos os tipos de vento, a cultura se mantém ereta, porque é o que um país tem de mais rico”, diz, citando exemplos da arte que se sobrepôs ao fascismo de Mussolini, na Itália, e ao Nazismo de Hitler, na Alemanha.

“A cultura sempre foi perseguida, mas é o pilar socializador mais importante. Minha esperança, não sou nenhum vidente, mas como ser humano, é de ver caminhar. Temos de ter esperança, há uma juventude muito bonita vindo, uma fonte na qual me banho, que me faz acreditar nisso. Volto a falar de George Floyd: são os jovens nas ruas, negros e brancos, de mãos dadas, é o que Martin Luther King sonhava. Ninguém nasce racista. O mundo caminha para entendermos melhor o outro. Estamos em evolução e sairemos melhor”, acredita Antônio Pitanga.

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