'Jojo Rabbit' navega no perigoso terreno da ficção sobre o Holocausto

Sátira ao nazismo com a história de um garoto que tem em Hitler seu amigo imaginário e estreia nesta quinta (6) no Brasil. Longa tem seis indicações ao Oscar

Mariana Peixoto 02/02/2020 06:00
Piki Films/Divulgação
Taika Waititi, que dirige Jojo Rabbit e interpreta Adolf Hitler na trama (foto: Piki Films/Divulgação)
Jojo Betzler é um garoto de 10 anos que vive sozinho com a mãe e ainda precisa dela para amarrar os sapatos. Como vários meninos de sua idade, tem um amigo imaginário e quer fazer parte de um grupo. Só que Jojo vive na Alemanha nazista. O amigo que sempre surge quando ele está sozinho para lhe dar conselhos (e oferecer cigarros, que o menino recusa veementemente) é Adolf Hitler. E Jojo, franzino e desajeitado, faz de tudo para entrar para a Juventude Hitlerista. Seu mundo – e as ideias em ele acreditava até então – vêm abaixo quando ele descobre que sua mãe esconde em casa uma garota judia.
Concorrendo a seis Oscars, incluindo o de melhor filme, Jojo Rabbit, do diretor neozelandês Taika Waititi, é o último dos nove longas que disputam a principal estatueta a estrear no Brasil. Na verdade, nesta semana o filme é exibido em BH em sessões diárias de pré-estreia,  nos cines Diamond e Ponteio. Na próxima quinta (3) ocorre o lançamento, propriamente dito. Produção que custou US$ 14 milhões (R$ 59,5 milhões), somou até agora US$ 55 milhões (R$ 233,8 milhões) de bilheteria.

É uma comédia dramática surrealista, inteligente e ácida, de roupagem pop (tem Beatles e David Bowie em alemão) e um elenco adorável. A começar pelo personagem-título, interpretado pelo garoto Roman Griffin Davis, que iniciou as filmagens (sua primeira experiência num set de cinema profissionao) aos 11 anos. Há ainda a jovem atriz Thomasin McKenzie (a garota Elsa), atuando ao lado de atores experientes como Scarlett Johansson, que interpreta a mãe de Jojo e está indicada duas vezes neste Oscar – pelo papel coadjuvante nesse filme e também o de protagonista em História de um casamento – e Sam Rockwell (o Capitão Klenzendorf, um desiludido instrutor da Juventude Hitlerista).

Waititi teve dificuldade para escalar o elenco, bem como para produzir o filme. O roteiro de Jojo Rabbit, inspirado livremente no romance Caging skies (Céu enjaulado, 2004), de Christine Leunens (inédito no Brasil), estava pronto desde 2012. No mundo dividido em que vivemos, nenhum grande estúdio queria se vincular ao momento mais sombrio da história do século 20, ainda que com uma história tão inusitada. Quem bancou a empreitada, depois de Waititi ouvir muitos nãos, foi a Fox Searchlight, referência na produção independente dos Estados Unidos. Ironicamente, ela foi comprada recentemente pela Disney – houve executivos que fizeram cara feia para o filme, que não se encaixa no modelo de “filmes para a família” da gigante do entretenimento.

ATOR 

O próprio Waititi, que tem descendência judaica, encarou o desafio de interpretar Hitler, que, para Jojo, é seu grande amigo Adolf. Sua interpretação, principalmente na primeira metade da narrativa, traz franca referência chapliniana. Jojo Rabbit é lançado justamente nos 80 anos do clássico O grande ditador (1940), primeiro filme de ficção que apresenta Hitler como personagem – o que Charles Chaplin faz, corajosamente, de forma extremamente crítica.

“Hollywood nos anos 1930 vendia muitos filmes para a Alemanha. Havia inclusive um embaixador alemão que controlava os filmes americanos. Criou-se um código de produção, que serviu basicamente para a Alemanha censurar. Pois a ideia é que, se um filme falasse mal do nazismo, era como se estivesse falando do povo alemão”, explica Luiz Nazario, professor de cinema da Escola de Belas Artes da UFMG e autor da tese de doutorado Imaginários de destruição: O papel da imagem na preparação do Holocausto (USP, 1994).

Como Chaplin não estava vinculado aos grandes estúdios, ele produziu O grande ditador com dinheiro próprio. Levou dois anos para a empreitada. A demora para lançá-lo fez com que perdesse o posto de primeiro filme antinazista de Hollywood – lugar que pertence a Confissões de um espião nazista (1939). “Como o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães tinha uma atuação nos EUA, jogaram bombas quando esse filme foi lançado. Chaplin foi também muito atacado. Hitler, furioso, mandou destruir todas as cópias de O grande ditador na Europa. Ficou somente uma, escondida na Cinemateca Francesa”, diz Nazario.

Foi somente após o ataque a Pearl Harbor (1941), quando os EUA entraram na Segunda Guerra Mundial, que Hollywood saiu do armário. De acordo com Nazario, a produção antinazista do período é de 150 filmes. Ao longo de oito décadas, Hitler já foi reinterpretado várias vezes no cinema, em algumas delas por grandes atores. Anthony Hopkins (O bunker, filme para TV de 1981 que lhe deu o Emmy de melhor ator), Alec Guinness (Hitler – Os últimos 10 dias, de 1973) e Bruno Ganz (A queda! – As últimas horas de Hitler, de 2004, em performance eletrizante, muito superior ao filme, que volta e meia retorna como meme para criticar governos autoritários).

Nazario é um crítico da produção contemporânea de cinema sobre o Holocausto. “Sou totalmente contrário, pois esse tipo de narrativa revisionista relativiza o mal. Até os anos 1960, 1970, havia sempre um historiador atuando como um consultor dos filmes, para que não houvesse erros históricos. Hoje, inventam histórias, algumas tornando Hitler um personagem simpático.”



SÁTIRA 

Coordenador-geral do Museu do Holocausto, em Curitiba, única instituição brasileira dedicada exclusivamente ao tema, Carlos Reiss vê o lançamento de Jojo Rabbit com bons olhos. “É uma sátira cheia de analogias e reflexões”, comenta ele, que acha que a “arte não tem que ter compromisso com a realidade”.

Para Reiss, não somente Jojo Rabbit, mas outras produções, como Dois papas, de Fernando Meirelles, que tem três indicações ao Oscar, levantam o mesmo debate.

“A questão é que o público tem dificuldade de entender que uma obra é baseada em fatos. O principal problema é quando deliberadamente uma obra artística se apresenta como factual. Nos casos em que acreditamos ser necessário, há um posicionamento do museu para elucidar alguma questão sobre a memória do Holocausto. Não é o caso de Jojo Rabbit, uma obra de arte maravilhosa.”

Professor de História da Universidade Federal do Espirito Santo – UFES, Sérgio Feldman acredita que “sobreviventes do Holocausto e suas famílias legitimamente têm o direito de ter um problema epidérmico com criações artísticas sobre o tema”. Ao mesmo tempo, ele afirma que toda forma artística tem que ser livre. “Ou seja, minha fala é contraditória, pois defendo a criatividade de um lado, mas tenho medo de como se banaliza o mal”, acrescenta.

O historiador lembra que o que chamou a atenção no filme A queda! foi apresentar Hitler como um ser humano. “Ali, ainda que fosse um cara absolutamente estressado, ele foi humanizado. No filme, Hitler não era diabo que chegou ao mundo e encarnou em um ser humano. O filme mostrou uma face que ninguém imaginava. Ele era um ser humano, os SS eram seres humanos, e isto tornava a coisa mais trágica. O medo de uma nova ficção em torno dele é que volte a sensação de que o mal é relativo. E o mal é terrível”, conclui.

Curso sobre antissemitismo

A partir de 30 de abril, o professor Luiz Nazario ministra na Escola de Belas Artes da UFMG a disciplina Antissemitismo e Revisionismo no Cinema Contemporâneo. O curso, de 30 horas, tem vagas para não alunos da universidade. Mais informações: (31) 3409-5267 e no site www.eba.ufmg.br.

ESCÂNDALO EM BERLIM

O Festival de Cinema de Berlim, cuja 70ª edição tem início no próximo dia 20, suspendeu o Prêmio Alfred Bauer, que integra os Ursos de Prata do evento, após artigo do jornal Die Zeit revelar que Bauer foi um ativo integrante do alto escalão de Josef Goebbels, o Ministro da Propaganda de Hitler. O prêmio levava seu nome como homenagem ao fato de ele ter sido o primeiro diretor do Festival de Berlim, cargo que manteve até 1976. Bauer (1911-1986) teria espionado membros da indústria cinematográfica e, após a Segunda Guerra, destruído os vestígios de seu passado nazista.


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