'Ser papa é a pior profissão do mundo', avalia diretor Fernando Meirelles

O cineasta brasileiro é o nome por trás de 'Dois Papas', filme em cartaz nos cinemas e disponível na Netflix

Ricardo Daehn 25/12/2019 14:30
Netflix/Divulgação
Na tela, há multiplicação de papas: o argentino Francisco (representado por Jonathan Pryce) e o alemão Bento XVI (Anthony Hopkins) (foto: Netflix/Divulgação )

Um completo exercício de tolerância embala o filme Dois Papas, produção da Netflix que, de tão democrática, ocupa duas telas: a da casa dos partidários do streaming e a de sala de cinema, no Liberty Mall. “Acho que a Igreja está tão polarizada quanto o Brasil ou o resto do mundo. Meu filme não prega, mas mostra que o diálogo é uma possibilidade. Eu acredito nisso. A produção fala sobre construir pontes, e não muros — isso vale para as nossas relações pessoais, para a política e mesmo para a prática espiritual”, comenta o diretor da fita, Fernando Meirelles, em entrevista ao Correio.

Ao tratar, na obra, sobre os bastidores do encontro entre o papa Bento XVI e o então futuro papa, Francisco, Meirelles — associado ao boom com Cidade de Deus — deixa clara a postura por determinada isenção. Na cartilha do devoto cinéfilo Fernando Meirelles, não há declarada paixão por filmes sobre papas. “Assisti e gostei de alguns, mas nenhum me impressionou. Para ser honesto, Vaticano e papas nunca me interessaram muito”, esclarece o artista, sempre bastante cotado, dado o talento, no cenário internacional.

Sabatinado sobre uma possível perfeição do sumo pontífice, o diretor de cinema não titubeia: “Claro que não. Ele é humano, imperfeito como todos nós. Por que não seria?”. Não se trata de desfeita, muito menos de chacota, até mesmo pelo fato de Fernando Meirelles cultivar declarada admiração pelo atual papa argentino. A vocação para construir pontes e o “dinamitar de muros” abriu caminho para a simpatia junto ao cineasta. “Minha motivação para o filme foi conhecer melhor este papa, o Francisco, principalmente depois de ele ter publicado sua encíclica Laudato Si, O Cuidado com a Nossa Casa Comum”, conta. Naquele documento, datado de 2015, Francisco tratava da degradação na ecologia, do consumismo desmedido e de impactos na natureza.

Dois Papas, em certa medida, mexe em vespeiro, trazendo à tona — nos pleitos filosóficos dos personagens centrais — temas como nazismo, tortura, ditadura e martirizações. Na atualidade, crenças e religiões, pela visão do cineasta, não tendem a diferir muito em relação a outras eras. “Não creio que seja muito diferente do que sempre foi. Claro que os formatos mudam, mas a ligação que muitos sentem com o divino, não importa dentro de qual religião, parece estar nos nossos genes, pois aparece em todas as culturas e civilizações ao longo de toda a curta história do homem no planeta”, analisa.


Cadê o Oscar?


Se, em 2004, Fernando Meirelles entrou para a história do Oscar, com a vertente de categorias do prêmio Oscar ao qual foi indicado, o alarde com os resultados de Dois Papas é moderado. O brasileiro poderia mudar o placar do reconhecimento do Brasil (mesmo à frente de uma obra feita em coprodução entre Reino Unido, EUA, Itália e Argentina)? No rastro do conteúdo algo religioso de filmes, como O pagador de promessas (1962), O quatrilho (1995) e Central do Brasil (1998), quais seriam as expectativas?

“O filme está indicado para algumas categorias do Globo de Ouro que antecede o prêmio da Academia (que vota o Oscar). Isso é um indício de que está no páreo. Mas a briga ali é sangrenta, então tento ficar na minha e o que vier, se vier, será lucro. Curioso que pouca gente sabe quem ganhou o Oscar do ano anterior, mas essas nomeações ou prêmios importam muito na indústria, pois um filme que aparece naquelas listas pode dobrar seu faturamento ou, às vezes, multiplicar lucros por 10”, comenta o artista. Com passe de diretor sujeito à valorização, ele é objetivo: “Mais propostas aparecem, e o cachê aumenta”.

 
Quatro perguntas/Fernando Meirelles  


Na avaliação do fim de ano como percebe a atuação do papa?
Ele continua firme em suas pautas pelo clima, pelo meio ambiente, pelo combate a desigualdade e continua falando sobre misericórdia, seu tema principal. Mas tenho que confessar que quando ele começou esperava que a esta altura a Igreja já tivesse se movimentado mais. Mas sei que esta é uma instituição muito grande, muito antiga e com raízes muito fundas, difícil de mexer. A grande reforma que ele poderia fazer, mas não creio que fará, seria mudar o papel das mulheres na Igreja, que ainda se limitam a ser secretárias e a ir passar o café. De uma perspectiva da fé ou do ponto de vista de “Deus”, caso ele exista, não faz sentido uma freira não poder rezar missa ou fazer um casamento. Porque elas não podem ser bispos ou cardeais? É medieval. 

Consegue ver o papa Francisco como conciliador?
Agora que conheci-o um pouco melhor ele não me parece tão conciliador. É teimoso e voluntarioso. Alguns dizem que é autoritário também. Mas aprendi também que com a Cúria tem que ser assim mesmo. É como diz o Bento XVI no filme: “Você coloca a sua mão ali e eles a transformam em carne moída”. Ser papa é a pior profissão do mundo.

Você é religioso? E como isso influenciou a obra? 
Sou agnóstico, mas este filme me fez pensar muito nestes temas da nossa origem, da nossa conexão com o resto do universo e do sentido da nossa existência. Nossa vida é um milagre, não tem como negar isso e começo a achar que ela não pode ser só um acaso sem nenhum sentido. Tenho noção da minha insignificância, sinto que sou uma poeirinha absolutamente desprezível e desimportante, mas começo a sentir também que esse grãozinho que sou faz parte de uma tempestade de areia cósmica, uma ordem que está em tudo.

O futebol está no filme de modo vital... Religião e futebol são ópios do povo?
O papa Francisco era um fanático torcedor do San Lorenzo na Argentina, por isso o futebol entrou. Mas sim. Para mim religião, futebol e também ideologia política, de direita ou de esquerda, são manifestações do mesmo fenômeno psicológico. Muitos indivíduos se identificam emocionalmente com estes temas e desenvolvem uma espécie de filtro que os tornam imunes à razão. Acho que isso está ligado também a aquela ideia de pensamento de cardume, da necessidade interna que temos de pertencer a um grupo e agir e pensar igual, não importa se é a Igreja, se é o Flamengo ou o PT. Há um estudo interessante que mostra que pessoas que participam de uma depredação durante uma manifestação, jamais fariam isso e reprovam a atitude como indivíduos, é o pensamento de cardume que as transforma. Alguns pastores e líderes populistas sabem disso e exploram este estado imantado de seus seguidores para controlá-los. Pessoalmente tenho muito medo de quem tem fé ou convicções ideológicas cegas. Também já fugi correndo de torcedores corinthianos num jogo no Morumbi no qual o Santos venceu. Prezo as minhas dúvidas.

CRÍTICA // Dois Papas ###

Ode à imperfeição

Votação, reformas, campanhas e aposentadoria: a exemplo da política, nenhuma decisão segue o caráter pessoal, quando se esmiúçam os trâmites do Vaticano, no enredo do filme Dois Papas. Entre a popularidade (que imanta a figura do futuro papa Francisco) e o rigor de quem, pelos excessos de estudos, desviou-se até mesmo da vida (condição assumida pelo papa Bento XVI), o longa assinado por Fernando Meirelles trata de divergências, mas conflui, de fato, para uma estrada congestionada pela liturgia do perdão, encerrado em abraço de paz. A intersecção de dois mundos internos corporificados por autoridades papais tem o encanto de dois sábios atores, impecáveis em cena: Jonathan Pryce (carismático) e Anthony Hopkins (que se faz desaparecer, a cada cena).

Com roteiro complexo assinado por Anthony McCarten (do sóbrio O destino de uma nação), um dos grandes acertos é o de questionar autoridades e emplacar a humanidade de figuras santificadas por legiões de católicos. Acompanhando uma modernidade, ainda hoje sem emparelhamento entre os cabeças que definem a ordem religiosa, a narrativa de Dois Papas casa com o espírito algo galhofeiro de Fernando Meirelles.

Balancear uma realidade de renúncia com a alegria carnavalesca da trilha que elenca Beatles, Mercedes Sosa e Abba é sintomático. Na ode libertária, o uso pontual de Bella Ciao e Claire de Lune também enobrecem o filme. Um filão de dados autocríticos para os dois pontífices em questão, no filme, destaca a luz da camada sadia do projeto.

Indicativos de escândalos, menções a desvio de dinheiro e a dose de ostentação sacramentada pela Igreja deixam clara a disposição de Meirelles de não ofertar a cara a tapas: pretende, e consegue, expandir as nuances de um (des)encontro de almas algo angustiado (dado o peso da responsabilidade de ser papa). Com contornos sutis, Dois Papas ainda acopla elementos de culturas de fé (entre as quais o tango e o futebol). Julgamentos, perdões e renúncias trazem fundo filosófico ao filme, que tem cenas emblemáticas, como a da ceia solitária de Bento XVI (algo ensurdecido, para ouvir “a voz de Deus”) e a generosidade de Francisco ao reservar holofotes para o colega, no mundo de adorações das selfies de terceiros.

MAIS SOBRE CINEMA