Parceria de diretores de 'Bacurau' começou em 2004. Conheça a história da dupla

Um era crí­tico de cinema e o outro pretendia estudar artes plásticas. Veja como os pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles acabaram fazendo o filme brasileiro mais falado deste ano

por Pedro Galvão 29/08/2019 08:45
Victor Jucá/Divulgação
Os diretores Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho (foto: Victor Jucá/Divulgação)
A Escola Municipal João Carpinteiro, com sua fachada deteriorada, evidencia que a trama de Bacurau, embora se passe “daqui a alguns anos”, como anuncia o início do filme que estreia nesta quinta-feira (29) no Brasil, fala de problemas históricos do país, que se estendem ao presente. O remoto e fictício vilarejo no sertão pernambucano que dá nome ao longa (e também a uma ave noturna típica da fauna local) sofre com a negligência desonesta do prefeito e a consequente privação de recursos hídricos, educacionais e medicinais.

Por outro lado, a homenagem feita pelos diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles ao cineasta norte-americano John Carpenter, diretor de filmes como Halloween, Fuga de Nova York e A bruma assassina, também deixa claro que Bacurau tem muito da cinefilia de dois amigos, que compartilham mais que o roteiro e a direção.

Assim como Mendonça Filho, Juliano Dornelles é recifense e assina a direção de arte nos dois longas anteriores do amigo – O som ao redor (2012) e Aquarius (2016). A parceria profissional começou bem antes, em 2004, no premiado curta Eletrodoméstica. Em 2009, trabalharam juntos em outro curta, Recife frio. 

Segundo Mendonça Filho, foi quando nasceu Bacurau, pela ideia dos dois de fazer “algo delirantemente exagerado e verdadeiro”. Dez anos mais tarde, eles lançaram o filme no Festival de Cannes, em maio passado, do qual saíram com o Prêmio do Júri.

Viajando pelo Brasil para acompanhar sessões do longa e debatê-lo com o público – os diretores estarão nesta sexta-feira (30) em Belo Horizonte, no Cine Belas Artes –, Kleber Mendonça Filho diz se sentir “numa dupla de músicos famosos em turnê” ao lado de Juliano. Autodefinido como nerd, ávido por cultura pop, leitor de toda a obra de Júlio Verne, cinéfilo e frequentador do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco ao longo da infância e da adolescência no Recife, Juliano Dornelles, hoje com 39 anos, 12 a menos que Kleber, pretendia se tornar artista plástico.

“Quando criança, eu desenhava muito. Deitava de bruços com papel sulfite, canetas e passava horas ali, vendo desde os seriados animados até os filmes mais pesados”, conta. Incentivado a aprimorar a prática, ingressou na faculdade de artes plásticas na Universidade Federal de Pernambuco, mas logo descobriu que sua arte era outra. “Sou da primeira geração que começou a fazer filmes sem a necessidade de uma ilha de edição linear. A primeira geração que podia editar filmes dentro de casa, com Final Cut ou com Adobe Premiere, isso mudou tudo”, afirma Dornelles.

Mesmo com a ausência de um curso de cinema na UFPE, ele diz ter se juntado a entusiastas de outras cadeiras e formado um coletivo que filmava, editava e montava filmes. Assim veio a aproximação com Kleber, quando o crítico já havia começado sua carreira como cineasta e se interessou pelo trabalho do grupo.

O salto de Juliano Dornelles para o cinema profissional se deu com Cinema, aspirinas e urubus (2005), do também pernambucano Marcelo Gomes, no qual trabalhou no Departamento de Arte. “Foi minha escola, onde havia um empirismo mesmo para fazer e vivenciar a mecânica cinematográfica. Eu pensava: agora enxerguei a Matrix, porque o cinema nessa época era um mistério em Recife. Não se faziam grandes filmes e, de repente, uma produção com orçamento de R$ 3 milhões, grande estrutura e muita gente vinda de São Paulo, alguns deles com certa soberba em relação à gente. E foi isso. Nunca mais parei de criar, dirigir, colaborar com filmes de amigos, sempre como diretor de Arte, mas pensando também nas minhas histórias. Aí veio o Kleber e pronto. Aliás, é assim, se você vai no Twitter, todo mundo quer ser amigo dele lá também”, diz o diretor.
 
O caminho até a finalização de Bacurau foi pavimentado “por uma vontade de fazer cinema de gênero”, segundo Dornelles, que define sua amizade com Mendonça Filho como fruto “desse entusiasmo que temos com alguns filmes”.
 
“O cinema de gênero permite trabalhar alegorias, o exagero, o absurdo. Tínhamos vontade de fazer um filme que se comunicasse com públicos variados, que não fosse difícil de acessar e que tivesse seu grau de seriedade e de catarse”, afirma. Ele cita entre os cineastas que admira o italiano Sergio Leone (1929-1989) e o canadense David Cronenberg.
 
Apontando que tem sintonia afinada de ideias com Mendonça Filho, Dornelles afirma que Bacurau “não foi escrito num retiro na montanha, com uma lareira, uma máquina de escrever e um copo de uísque. Estávamos numa mesa, com dois monitores, TV ligada, rádio, portais de notícia e o mundo jogando as inspirações na nossa cara”.

A maior parte da crítica enxerga na história de Bacurau um comentário potente e raivoso ao Brasil de hoje, com uma crítica direta ao governo Jair Bolsonaro. Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, no entanto, dizem que a construção do filme vem desde antes da eleição presidencial de 2018.
 
“Cinema não é reportagem. Eu e Juliano somos brasileiros, pernambucanos, do Nordeste. Temos nossa própria interpretação do nosso país. Não é possível para nós pensar uma comunidade nordestina sem pensar que ela é parte do planeta, não apenas daquela região”, diz Mendonça Filho. É comum à dupla o incômodo em relação à representação, no cinema, na TV e outras mídias, do povo sertanejo como “um povo simples”. Sua ideia era desconstruir esse estereótipo.

Embora o vilarejo da trama não tenha mais que 100 habitantes, há uma médica competente, a dona Domingas (Sônia Braga), e o professor Plínio (Wilson Rabelo), que cativa seus alunos em aulas de geografia ministradas com um tablet e mapas on-line, sem mencionar os conhecimentos botânicos muito úteis à comunidade preservados por Damiano (Carlos Francisco).
 
Há também violência, prostituição e miséria, além de um prefeito charlatão, vivido por Thardelly Lima, que só aparece para pedir votos, sendo duramente confrontado pelos locais. Nesse contexto, surge uma ameaça externa e aterrorizante, que obriga os moradores a se organizar de modo mais complexo.
 
“A força motriz em Bacurau é uma resposta a essa presunção do homem branco da cidade grande que chega num lugar ermo e tem esse pensamento muito limitado sobre o outro. Nossa ideia era fazer um filme em que esses caras teriam uma surpresa ruim”, diz Juliano Dornelles.

O diretor e roteirista comemora a história de sucesso que vem sendo construída pelo cinema de Pernambuco. “É incrível, porque aquilo que O som ao redor e Aquarius alcançaram permitiu a Bacurau acontecer da melhor forma, com quase R$ 8 milhões de orçamento, o que é muito raro para um filme pernambucano e mostra a importância das políticas públicas mais democráticas para o cinema”, diz.

Apesar de ter vencido o Prêmio do Júri em Cannes, Bacurau não conseguiu ser o representante brasileiro no Oscar 2020. O escolhido pela comissão formada por membros da Academia Brasileira de Cinema foi A vida invisível, do cearense Karim Aïnouz, que ficou com o prêmio máximo da mostra Um Certo Olhar, também em Cannes.
 
Sobre isso, Kleber Mendonça Filho diz que “Bacurau tem uma carreira internacional gigante. É um filme de enorme prestígio, mas prefiro que seja dito que Karim é um grande cineasta e vai representar muito bem o Brasil”.

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