Em 'Dor e glória', Pedro Almodóvar faz ficção com a própria vida

Longa do diretor espanhol deu a Antonio Banderas o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes. Estreia no Brasil é nesta quinta (13)

por Pedro Galvão 13/06/2019 09:00
Jéssica Quinalha/Divulgação
Antonio Banderas trabalhou com Pedro Almodóvar nos anos 1980 e só voltou a filmar com o cineasta em A pele que habito (2011). Em Dor e glória ele faz o papel de um cineasta em crise. História é inspirada na vida do diretor (foto: Jéssica Quinalha/Divulgação)
Depois de andar um pouco afastado dos holofotes do cinema mundial nos últimos anos, Antonio Banderas, de 58 anos, conquistou o maior prêmio de sua carreira há duas semanas. Presidido pelo mexicano Alejandro González Iñárritu, o júri do 72º Festival de Cannes (14/5 a 25/5) deu a Banderas o prêmio de melhor ator por seu desempenho como Salvador Mallo, um cineasta próximo dos 60, em crise profissional e existencial, protagonista de Dor e glória, que estreia nesta quinta-feira (13) no Brasil.

O personagem, no entanto, tem muito mais a ver com o diretor do longa, Pedro Almodóvar, embora a trama não seja exatamente uma biografia do mais reconhecido cineasta espanhol em atividade. A Palma de Ouro – que escapou mais uma vez, indo para o sul-coreano Parasite, de Bong Joon-Ho – é um dos raros prêmios que Almodóvar ainda não conquistou. Vencedor do Oscar (Tudo sobre minha mãe; 1999), do Globo de Ouro (Tudo sobre minha mãe e Fale com ela, 2002) e do Bafta, o prêmio do cinema britânico (Tudo sobre minha mãe, Fale com ela e A pele que habito, 2011), ele acumula ainda uma vasta lista de prêmios individuais por direção e roteiro, inclusive em Cannes.

O prêmio a Banderas, contudo, celebra por tabela o conjunto da obra de Almodóvar, cuja vida pessoal e filmografia são o cerne do filme. Ao receber sua Palma, o ator agradeceu ao cineasta, com quem trabalhou pela oitava vez: “Eu o respeito, o admiro, o amo. Ele é meu mentor”.

Banderas deu detalhes de como foi a construção do personagem, entendido como um alter ego de Almodóvar, em entrevista à Rádio França Internacional. Segundo ele, o diretor fez a seguinte recomendação: “Antonio, este personagem está sob a influência da heroína, mas não quero que isso seja perceptível. Sente dor o tempo todo quando caminha, com enxaquecas, mas não quero que se perceba. E, sim, quero que você seja eu, que você interprete Pedro Almodóvar, mas também não quero que se note”. Na entrevista coletiva em Cannes, Banderas, que sofreu um infarto há dois anos, se emocionou ao dizer: “Os meses de verão gravando esse filme foram os melhores da minha vida e isso ninguém pode me tirar”.

O sofrimento provocado pela dor na coluna que Banderas interpreta na tela é real na vida de Almodóvar. O diretor disse ao diário espanhol El País, porém, que o uso da heroína para aliviar essa e outras dores é ficcional. Apesar disso, a droga, também chamada de “caballo” (cavalo) na Espanha, teve uma época de alta popularidade na noite madrilenha nos anos 1980, a década que projetou Almodóvar mundialmente, e serviu para entrelaçar aspectos da trama.

REENCONTRO Em profunda desilusão com a carreira, há anos sem lançar um filme, solitário e angustiado pelo problema de coluna, Salvador Mallo resolve procurar Alberto Crespo (Asier Etxeandia), ator com quem havia trabalhado e se desentendido em seu último sucesso, o longa Sabor, cujo lançamento ocorrera duas décadas antes. Com Crespo, Mallo sabia que conseguiria uma dose e usaria heroína pela primeira vez.

A partir dessa aproximação, o protagonista tenta se reencontrar também consigo mesmo. De forma não linear, a história entrelaça acontecimentos do presente e as memórias do cineasta, que retoma sua atividade. O retorno à criação acaba trazendo de volta também um amor do passado: Federico (Leonardo Sbaraglia), com quem teve intenso relacionamento na juventude, interrompido por causa do vício do parceiro em droga.

As memórias de Salvador recuam até a época de sua infância, quando vivia em um pequeno povoado, junto da mãe. O papel coube a Penélope Cruz, que assumiu o lugar de atriz-fetiche de Almodóvar a partir de Carne trêmula (1997). A parceria se estendeu por Tudo sobre minha mãe (1999), Abraços partidos (2009) e Volver (2006), com o qual Penélope ganhou o prêmio de melhor atriz em Cannes.

Dor e glória traça uma intensa ligação afetiva do personagem com sua mãe. A personagem também surge na fase adulta da vida do cineasta, agora interpretada por Julieta Serrano, outro nome frequente na filmografia do espanhol. Almodóvar declarou, contudo, que a relação que ele de fato teve com sua mãe é muito diferente da que se vê no filme.

Ao mostrar Salvador ainda criança, o diretor revela mais de sua relação com ele próprio. O futuro cineasta (da história) pensava em ser professor, carreira que Almodóvar exerceu antes de fazer cinema. Como se trata de um filme sobre Pedro Almodóvar feito por Pedro Almodóvar, não falta excelência dramática. A beleza da cena que mostra o despertar do desejo sexual do garoto Salvador (Asier Flores), ao se deparar com a nudez de um pedreiro que trabalhava em sua casa, é um dos momentos em que a assinatura de Almodóvar fica evidente, assim como o final metalinguístico do filme e sua declaração de amor à sétima arte. Segundo o cineasta, Dor e glória é uma autoficção. O fato é, nesse longa, Pedro Almodóvar deu a Pedro Almodóvar uma bela vida de cinema.


CENAS DE UMA VIDA
Confira momentos importantes na trajetória do diretor espanhol

1949  –  Nasce, em Calzada de Calatrava



Anos 1980  –  Muda-se para Madri e lança seus primeiros filmes, Labirinto de paixões (foto)(1982), Maus hábitos (1983) e Que fiz eu para merecer isso? (1984), iniciando sua parceria com as atrizes Carmen Maura, Cecilia Roth e Julieta Serrano e com Antonio Banderas
1985  –  Funda a produtora El Deseo, ao lado do irmão Agustín Almodóvar
1988   –  Lança Mulheres à beira de um ataque de nervos, que foi indicado ao Oscar, ao Globo de Ouro e ao Bafta como melhor filme estrangeiro



1990   –  Lança Ata-me (foto), seu último filme com Banderas antes de A pele que habito (2011)



1997   –  Lança Carne trêmula (foto), primeiro de seus filmes com participação de Penélope Cruz, que afirma ter se decidido a ser atriz quando assistiu a Ata-me



1999  –  Lança Tudo sobre minha mãe (foto), com o qual vence o Oscar, o Globo de Ouro e o Bafta, além da Palma de melhor diretor em Cannes
1999  –  Morre sua mãe, Francisca Caballero




2002 
–  Lança Fale com ela (foto), com o qual vence o Globo de Ouro e o Bafta e recebe o Oscar pelo roteiro original
2004  –  Lança Má educação




2006
  –  Lança Volver (foto), que dá a Penélope Cruz a Palma de melhor atriz em Cannes e uma indicação ao Oscar




2011
  –  Lança A pele que habito (foto)
2019  –  Lança Dor e glória

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