Quincy Jones conduz documentário que conta sua história e sua luta para a afirmação dos negros através da música

Produção está disponível na Netflix e é conduzida pelo próprio homenageado

por Ângela Faria 15/10/2018 09:40

É bom avisar: sem cometer a heresia do spoiler, não dá para escrever sobre Quincy (2018), documentário de Alan Hicks e Rashida Jones disponibilizado pela Netflix. Não se trata, apenas, de um filme sobre música. Estão lá o abominável racismo, ao qual Quincy Jones não se curvou.

CHRIS DELMAS/AFP/25/4/17
Quincy Jones tocou com grandes nomes do jazz, produziu Thriller, de Michael Jackson, e tem 27 prêmios Grammy (foto: CHRIS DELMAS/AFP/25/4/17 )
 

A luta desse genial artista para chamar a atenção do mundo para o sofrimento dos irmãos africanos com o single We are the world, que arrecadou US$ 63 milhões para combater a pobreza. E a celebração da liberdade – seja para quebrar parâmetros na arte, no comportamento ou na indústria da cultura. Nunca é demais lembrar: Quincy, cria do jazz, empoderou o pop. Foi ele o arquiteto de Thriller, a obra-prima de Michael Jackson.

Os 124 minutos da fascinante viagem são conduzidos pelo próprio produtor, compositor e instrumentista, que hoje tem 85 anos. Esse pisciano (“somos loucos”, avisa) é um sedutor, mesmo velhinho. Aliás, seus três casamentos, inclusive com mulheres brancas, deram-lhe sete filhos – a cineasta Rashida está entre eles. A linda modelo Kenya nasceu em 1993 de um romance com a atriz Nastassja Kinski. Com 27 prêmios Grammy na parede, Quincy é um E.G.O.T winner – está entre os 18 donos das estatuetas do Emmy, Grammy, Oscar e do Tony. O homem é superlativo, mas não nos seduz como lenda. O que encanta é seu apetite pela vida. E haja disposição para o trabalho. Ele nos legou – até agora – 2,9 mil músicas, 300 discos e trilhas de 51 filmes...

Adoentado e visivelmente cansado, Quincy não mediu esforços para produzir o megaevento que marcou a abertura do Smithsonian National Museum of African American History and Culture, em Washington. O show foi uma beleza, cheio de celebridades, com a presença do então casal presidencial Michelle-Barack Obama. Porém, bonito de ver, mesmo, foi a emoção de duas cantoras de R&B, as meninas Chloe e Halle. Quase às lágrimas, as jovenzinhas ouvem dele, durante o ensaio: “Obrigado por estarem neste planeta. É verdade! Estou velho para falar besteira”.

Dedicado à saga dos descendentes de escravos nos EUA, aquele museu é mesmo especial – para o mundo, para os EUA (hoje de Donald Trump) e para Quincy. “É uma viagem crescer neste país do caralho”, diz ele, ao ressaltar a importância do Smithsonian para a autoestima das crianças afro-americanas.



VALES

Um filme hagiográfico, sim, beneficiado pela intimidade do personagem com a filha diretora. Mas o pisciano é safo. Quincy dribla a própria lenda, o tempo todo. Afinal, Count Basie (“um pai para mim”) ensinou-o a lidar com os vales, pois as colinas sabem se cuidar. Carismático, nosso anfitrião jamais ofusca os convidados. E só tem fera por lá.

“Uau!”, solta o rapper Dr. Dre, logo no início, ao entrevistar o veterano produtor. A mãe esquizofrênica de Quincy foi levada de casa numa camisa de força, em Chicago, quando ele tinha 7 anos. Neto de escravos, filho de um workaholic e criado pela avó, viveu pelas ruas até os 11. Comeu até rato. Queria ser gangster, revela a Dre, exibindo as cicatrizes daqueles tempos, talhadas a picador de gelo e a canivete. Adolescente, foi “salvo” pelo piano que encontrou num arsenal que invadira em Seattle, para onde o pai se mudara, fugindo da esposa enlouquecida.

O garoto aprendeu a tocar trombone, corneta e sax, mas decidiu ser trompetista, inspirado por homens negros “respeitados e orgulhosos” do mundo do jazz. Aos 14, atazanou Ray Charles, de 16, para tocarem juntos. Tornaram-se inseparáveis. Teve a própria banda, fez sucesso, decidiu se mudar para Paris porque em Nova York não deixavam pretos como ele escreverem arranjos para cordas. Nas turnês pelo interior dos EUA, cansou de ver bonecos negros enforcados diante das igrejas. Prefere o racismo explícito do Sul à hipocrisia do Norte. Na capital francesa, estudou com Nadia Boulanger, a mestra de Stravinsky.

RACISMO

Quincy usa até hoje o anelão de ouro que ganhou de Frank Sinatra. Jovem maestro, conduziu o “navio” de Ol’ Blue Eyes, no auge do sucesso. Foi “A Voz” quem peitou o racismo em Las Vegas, onde Quincy, Sammy Davis Jr., Lena Horne e Henry Belafonte se apresentavam nos luxuosos palcos, mas eram proibidos de entrar nos cassinos e obrigados a comer na cozinha dos hotéis. Só podiam se hospedar em bairros para negros. “Frank, sozinho, acabou com isso. Disse: ‘Daremos um jeito nessa merda’. E deu. Pegou o Sammy, o Basie e a mim e mudou toda a situação racial’”, agradece Quincy.

No filme, o velho homem dos estúdios não para de surpreender os jovens astros. Kendrick Lamar aprende com ele que o rap não veio do Bronx, mas “da África, dos louvores africanos”. Hipnotizado, o gênio do hip-hop ouve de Quincy: “Você está no caminho certo. Estou muito orgulhoso de você”. Dito e feito. Lamar levou o Pulitzer da música – até então, concedido apenas a jazzistas.

Outro garoto negro, Michael Jackson, costumava cantar de costas para Quincy, o produtor que apostou as fichas no ex-Jackson Five. Tímido, escondia-se atrás do sofá durante os ensaios de Thriller. O filme mostra um brasileiro, o percussionista Paulinho da Costa, no “esquadrão Q assassino” (palavras de Quincy) que gravou a obra-prima do pop.

NEGÓCIO

O documentário é uma viagem pela música americana. Afinal de contas, Quincy tocou com Ray Charles e Lionel Hampton. Trabalhou com Miles Davis, Sarah Vaughan, Dinah Washington, Count Basie e Ella Fitzgerald, entre outras estrelas. É reconhecido pelo povão. Ao visitar sua antiga casa, em Chicago, ouviu de um garotinho negro de 8 anos, enquanto autografava o caderno: “Você iniciou Michael Jackson no negócio”.

Em 1995, preocupado com o destino de garotos negros como aquele menino – sobretudo rappers metidos em tretas com os próprios niggas e a polícia –, Quincy promoveu um seminário em Nova York. Tupac Shakur seria assassinado pouco depois. Suge Knight, Dr. Dre, Puffy Daddy e os rapazes do aguerrido Public Enemy o ouviram dizer: “Estamos prestes a perder duas gerações de jovens”. Ao se dirigir à “nação hip-hop”, mandou: “Não vou enrolar aqui. Quero ver vocês viverem pelo menos até a minha idade”. Tinha 62 anos. Antes disso, foi um dos primeiros a valorizar o hip-hop. Mesclou rap e jazz em um de seus discos.

Em 2016, um emocionado Quincy vê as fotos e objetos dos amigos mortos pendurados no Smithsonian National Museum – Michael, Ella, Sarah, Miles, Count, Tupac, Hampton, Dinah, Ray Charles... É duro ficar cada vez mais sozinho. Aliás, quase se juntou à turma – e várias vezes. “Sou um reator e um sobrevivente”, resume. Já operou dois aneurismas na cabeça, amargou dias em coma diabético, a gente o vê passando mal no palco devido ao coágulo que por pouco não o levou. Hoje, jura às filhas que parou de beber, diz que “as garotas” são a única tentação.

Agora, chega de spoiler. Em entrevista concedida este ano à revista GQ, Quincy Jones revelou ter nada menos de 22 namoradas distribuídas pelo mundo – Xangai, São Paulo, Rio de Janeiro e... Belo Horizonte!


QUINCY
. Direção: Alan Hicks e Rashida Jones
. 124 minutos
. Disponível na Netflix

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