Crítica: Steven Spielberg faz homenagem ao 'rascunho da história'

Diretor desenha conflitos com sua habitual habilidade e deixa para Meryl Streep e Tom Hanks diálogos interessantes

Silvana Arantes 25/01/2018 09:00

Universal/Divulgação
Meryl Streep vive Katharine Graham, que assume o comando do jornal Washington Post após o suicídio de seu marido. (foto: Universal/Divulgação)

Steven Spielberg fará um filme sobre os chamados Papéis do Pentágono sob a ótica do Washington Post. Essa notícia soou estranha quando divulgada, porque dava a entender que o diretor escolhera a perspectiva de um coadjuvante para narrar um dos capítulos mais densos da história da imprensa americana, protagonizado pelo jornal The New York Times. Foi o Times que obteve e publicou o conteúdo dos papéis governamentais classificados como ultrassecretos, revelando as manobras da Casa Branca para ludibriar a opinião pública e seguir adiante com uma Guerra do Vietnã, mesmo ciente da impossibilidade de vencê-la.

The Post – A guerra secreta não deixa dúvidas sobre as razões – e o acerto – da escolha de Spielberg. Esse é um filme que define o jornalismo como “o primeiro rascunho da história” e trata o dilema como sua matéria-prima. No caso do Washington Post, os dilemas se avolumam e se superpõem de tal maneira que a tensão e o suspense são o tom dominante no filme, muito embora a quase totalidade de suas cenas se passe no interior de uma mansão (da publisher Katharine Graham, vivida por Meryl Streep), na casa do editor Ben Bradlee (Tom Hanks) ou na redação que ele comanda.

 

 

Publicar ou não publicar o material é o maior dilema de Graham, alimentado pelo fato de estarem em lados diferentes da balança questões como a credibilidade do jornal versus a perspectiva de sua falência; as relações pessoais da empresária com o “poder” versus a chance de um processo resultante em prisão; a opinião de seus conselheiros versus sua intuição.

Spielberg desenha esses conflitos com sua habitual habilidade e o mimo extra ao espectador de os embates serem travados entre Meryl Streep e Tom Hanks, sócios do restrito clube de seres agraciados com a tão rara quanto indefinível “qualidade de presença”, característica que distingue os atores dos semideuses do cinema.

COMPROMISSO São particularmente interessantes os diálogos em que publisher e editor se questionam mutuamente sobre a extensão de seu compromisso com o jornalismo – que pode cobrar longas amizades, entre outros embaraços na esfera conhecida como “vida pessoal”.

O fato de ser Katharine a pessoa a quem cabe a grande decisão não é um detalhe, e Spielberg extrai da situação sua cascata de significados, recriando com cuidado a atmosfera daqueles anos 1970, em que o ambiente profissional e de negócios era um território quase exclusivamente masculino, ficando reservado às mulheres o posto de rainha do lar. Meryl Streep tem o talento necessário para dar à sua personagem um ar de insegurança acompanhada de inteligência.

O ousado “sim” de Katharine à publicação dos Papéis do Pentágono levou o Washington Post a um outro patamar entre os jornais americanos. Mas não é esse o aspecto que interessa a The Post, e aqui está sua coincidência com a safra de concorrentes ao Oscar 2018, capitaneada por A forma da água (de Guillermo Del Toro; 13 indicações), Dunkirk (de Christopher Nolan; oito indicações) e Três anúncios para um crime (de Martin McDonagh; sete indicações).

Todos eles lidam com a questão de como identificar e combater um adversário aparentemente muito mais poderoso. Ao formular sua resposta, o longa de Spielberg dá aos “combatentes” um perfil de pessoas dotadas de “idealismo, senso de responsabilidade e uma dose de ego”. A elas, a recomendação de The Post é ater-se a valores maiores. Mesmo que o inimigo seja o ocupante da Casa Branca. Porque, afinal, quando passada a limpo, a história será melhor que seu rascunho, esse produto de uma atividade imperfeita (e ainda assim apaixonante) como é o jornalismo.

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