Pesquisa da UFMG analisa representação feminina no cinema

Projeto mostra que o retrato que as obras apresentam contribui pouco para a transformação da sociedade patriarcal vigente

29/09/2017 13:10
Christiane Luce Gomes*
 
Imagem Filmes/Divulgação
Glória Pires interpretou a psicanalista Nise da Silveira (foto: Imagem Filmes/Divulgação)
Na sala escura do cinema, levados pela experiência de deslocamento – física, estética ou emocional –, a realidade exibida na tela estabelece relações simbólicas constitutivas. Diante do presente debate sobre o espaço das mulheres na sociedade atual, é pertinente questionar sobre o quanto elas estão representadas nos filmes a que assistimos. Que tipo de vínculos estabelecem com os homens? Quais contextos culturais e marcadores identitários constituem as personagens femininas em narrativas cinematográficas latino-americanas? Será que esses filmes evidenciam possibilidades de empoderamento para as mulheres?

É notório que qualquer representação é uma forma de conhecimento elaborado e compartilhado socialmente, que tem um objetivo prático e contribui para a construção de uma realidade social comum. Então, como o cinema representa as mulheres? O que este tipo de representação diz a respeito da sociedade e como pode contribuir para a presente discussão acerca da hegemonia de uma lógica machista e patriarcal?

Com essas questões em mente, foi desenvolvida uma pesquisa na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em um cinema de Belo Horizonte, contemplando filmes latino-americanos exibidos na programação regular entre setembro de 2015 e junho de 2016. A partir da premissa de que pelo menos uma personagem feminina deveria ser mencionada na sinopse, fez-se o recorte de 15 filmes: três argentinos, um chileno e 11 brasileiros.

A pesquisa, que realizou 54 entrevistas, ao menos três pessoas por filme – a maior parte um público acima dos 40 anos –, constatou que a grande maioria dos longas-metragens exibidos no período são construídos sob o viés masculino. Apenas dois deles trazem personagens femininas em posição de domínio e três apresentam a perspectiva de empoderamento feminino em suas personagens.

É evidente que na maioria dos filmes recentes da produção latino-americana as mulheres são invisibilizadas, nem sequer têm nome e a função dramática serve prioritariamente para dar suporte aos personagens masculinos.

Em boa parte da produção, as mulheres desempenham papéis de pessoas submissas e resignadas, destinadas a exercer apenas funções de mães, esposas e donas de casa. Ao mesmo tempo em que essa representação expõe o peso da tradição, que reserva às mulheres o “lugar” subjugado na família e na sociedade, esta representação – em geral, de uma mulher frágil, insegura e com baixa autoestima – acaba por reforçar o mito do amor romântico de uma sociedade incompatível com o presente.

Gullane Filmes/Divulgação
Jéssica, de 'Que horas ela volta?', é um raro exemplo de personagem transformadora (foto: Gullane Filmes/Divulgação)
Entre os 15 filmes analisados, dois deles têm personagens femininas como prostitutas. Nestes casos, a mulher surge reduzida a um objeto sexual, o que, embora possa servir como denúncia, incorre no risco de criar uma representação que reforça um sentido de feminilidade associado à atratividade ou disponibilidade sexual para os homens.

Um outro grupo de personagens femininas, com características de firmeza e determinação, pode ser, de modo geral, dividido entre as “desviantes” e as transformadoras. No primeiro caso, são personagens que fogem dos padrões estabelecidos: a mulher infiel ao marido; a que não tem “instinto maternal”; a mãe solteira que trabalha como caminhoneira; a mulher grávida que seduz um desconhecido para satisfazer seu próprio desejo sexual; a obcecada que coloca em risco a sua gravidez; a mulher falsa, cruel e dissimulada; as desonestas, gananciosas e manipuladoras; as liberadas e abertas ao sexo casual; a lésbica que não abre mão de assumir publicamente seu relacionamento; e a jovem traída e abandonada que decide levar adiante a gravidez não planejada, mas depende financeiramente de seu pai e, emocionalmente, de um amigo. Em apenas dois filmes as figuras femininas encarnam princípios éticos, são questionadoras do status quo e lutam pelo empoderamento. É o caso de Jéssica, do filme Que horas ela volta?, e Nise, sobre a psicanalista retratada no filme biográfico de Roberto Berliner.

Foi constatado, assim, que quase todas as personagens femininas retratadas nas telas não têm uma independência narrativa em relação aos homens, desempenhando papéis pouco relevantes nos contextos culturais que as constituem – sejam eles familiares, profissionais, políticos ou sociais. Em 10 casos, as personagens femininas não têm história ou características próprias.

Outro aspecto que merece atenção é o fato de que, em dois casos – O clube e Mulheres no poder –,  o comportamento das protagonistas reproduz modelos masculinos construídos sobre os preceitos patriarcais. Assim, 12 dos 15 filmes analisados não constituem uma representação que indica a possibilidade de empoderamento e superação das relações desiguais de gênero que prevalecem na sociedade latino-americana.

Em apenas três obras a representação de mulher apresenta situações complexas, enunciação de diálogos contextualizados e bem-elaborados, desempenhando um papel com voz e visibilidade, capacidade de ação e de decisão. Boi neon, Nise, o coração da loucura e Que horas ela volta? apresentam abordagem mais progressista em relação à mulher e, em todos, são elas que desafiam valores estabelecidos, seja pela inversão de papeis atribuídos a mulheres e homens (Boi Neon), em contextos profissionais (Nise) e no despertar da consciência sobre as desigualdades sociais (Que horas ela volta?).

O que se pode constatar é que a recente produção latino-americana e, em especial, a brasileira, está longe de oferecer um tipo de representação da mulher que instigue reflexão sobre o modelo social vigente e contribua para sua transformação.

Professora da UFMG, pesquisadora da Fapemig (PPM) e do CNPq. Coordenadora do grupo Ludicidade, Cultura e Educação (Luce), da UFMG
 
Obras analisadas

Que horas ela volta? 
Brasil, 2015 
direção de Anna Muylaert

O clube 
Chile, 2015 
direção de Pablo Larraín

Sem filhos 
Argentina/Espanha, 2015
direção de Ariel Winograd

Boi neon 
Brasil, 2016 
direção de Gabriel Mascaro

Ela volta na quinta 
Brasil, 2016
direção de André Novais

Papéis ao vento 
Argentina, 2016
direção de Juan Taraturo

Para minha amada morta 
Brasil, 2016
direção de Aly Muritiba

A bruta flor do querer
Brasil, 2016
direção de Andradina Azevedo e Dida Andrade

Nise, o coração da loucura 
Brasil, em 2016
direção de Roberto Berliner

Prova de coragem 
Brasil, 2016 
direção de Roberto Gervitz

Mulheres no poder 
Brasil, 2016
direção de Gustavo Acioli

Amores urbanos 
Brasil, 2016
direção de Vera Egito

Roteiro de casamento 
Argentina, 2016
direção de Juan Taraturo

O outro lado do paraíso 
Brasil, 2016 
direção de André Ristum

Ponto zero
Brasil, 2016
direção de José Pedro Goulart 

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