'Ninguém poderia prever que tantos poderosos seriam presos', afirma Marco Bellocchio sobre Mãos Limpas

Diretor italiano que é homenageado pela 40ª Mostra de SP comenta sua carreira, fala sobre política e sobre os desdobramentos da operação italiana considerada modelo para a Lava-Jato

por Mariana Peixoto 25/10/2016 08:44

São Paulo – Figura central da 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o italiano Marco Bellocchio, de 76 anos, é um dos mais relevantes (e ativos) cineastas de seu país.

 

Também autor do cartaz do evento paulistano, o diretor ganhou não só retrospectiva (com uma dezena de filmes) como exibe suas três produções mais recentes.

MOSTRA DE SP/DIVULGAÇÃO
Cena de 'Sangue do meu sangue', sobre freira torturada para salvar a alma do amante (foto: MOSTRA DE SP/DIVULGAÇÃO )

Dos novos, a produção inclui o curta Pagliacci (2016) e os longas Sangue do meu sangue (2015) e Belos sonhos (2016). Esses dois, por sinal, devem chegar ao circuito comercial até dezembro.

 

O primeiro tem duas partes. No século 17, freira é torturada para salvar a alma de seu amante. Já na atualidade, um homem deseja comprar o monastério onde a religiosa sofreu tortura. O cenário é Bobbio, onde Bellocchio filmou seu longa de estreia, De punhos cerrados (1965).

Já Belos sonhos atravessa diferentes épocas da trajetória do mesmo personagem. O garoto Massimo se recusa a aceitar a morte da mãe.

 

Adulto, torna-se jornalista de prestígio, mas sua vida começa a desmoronar quando ele cobre a guerra da Bósnia, na década de 1990. Com ataques de pânico, Massimo tem que prestar contas a fantasmas do passado.

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Em 'Belos sonhos', jornalista que cobre a guerra da Bósnia sofre ataques de pânico (foto: MOSTRA DE SP/DIVULGAÇÃO )

Também ator, roteirista e produtor, Bellocchio tem meio século de carreira. Atravessou diferentes fases do cinema e da vida italianos.

 

Sempre fora das convenções, faz cinema político, provocativo e, por vezes, confronta as instituições de seu país. É considerado dono de uma obra inventiva que sabe brincar com a forma.

Bellocchio criticou os governos de direita no início da carreira (De punhos cerrados); influenciado pela psicanálise, chocou meio mundo com cenas de felação em Diabo no corpo (1986); mostrou o sequestro do político Aldo Moro do ponto de vista de seus algozes em Bom dia, noite (2003); fez da mulher que Mussolini tentou apagar da história a protagonista em Vencer (2009).

“Nunca quis passar uma mensagem. Falo com imagens que me impressionam”, afirmou Bellocchio ontem, em encontro com jornalistas. O cineasta disse que nunca foi político, comentou as mudanças por que o cinema passou ao longo das últimas décadas e como vê a Itália hoje.

 

Confira trechos da entrevista.

Utopia
“Meus filmes sempre puderam circular livremente na Itália. Várias vezes passei por diretor político, porém, sem sê-lo. Isso ocorreu numa época em que o cinema político recebia muita atenção. Depois, tive um período mais introspectivo, em que minha atenção (política) começou a se distanciar. Como tantos outros, estava, no fundo, saindo de uma desilusão política. Nunca fui um verdadeiro político. Como tantos outros, acreditava numa utopia política, pensava em mudar o mundo. No fundo, era uma utopia de esquerda, o socialismo utópico que se contrapunha à ideologia burguesa. Palavras tinham importância extrema; hoje elas estão muito menos importantes.”

Marcos
“Tive um filme-escândalo: Diabo no corpo. Foi um escândalo na Itália por minha adesão à psicanálise de Massimo Fagiolli. Fui muito julgado. E houve um último período de filmes muito pessoais, que contavam histórias italianas sem preocupação com julgamento histórico e político. Vencer não é sobre o fascismo, mas sobre uma mulher que enlouquece. No papel está a mulher de Mussolini. É a história vista sob um ângulo muito particular. Bom dia, noite mostra, na verdade, mais a vida cotidiana do grupo de terroristas que sequestrou (e depois assassinou) Aldo Moro.”

Revolução
“Nos anos 1960/1970, o cinema era uma arma para fazer a revolução. Essas coisas agora foram um pouco esquecidas. No meu modo de fazer cinema, nunca quis passar uma mensagem. Falo com imagens que me impressionam, me surpreendem. Primeiro, tenho um fragmento para construir uma história. E dentro dessa história existem ideias que são minhas. Sou uma pessoa muito moralista, até por minha educação, e tenho que combater esse moralismo.”

MOSTRA DE SP/DIVULGAÇÃO
Cena de 'Bom dia, noite', de Marco Bellocchio (foto: MOSTRA DE SP/DIVULGAÇÃO )

Religião
“Disseram-me que no Brasil há um movimento evangélico que está brigando com o catolicismo. É algo de que sei muito pouco. Um artista tem que falar do que conhece. Minha educação foi muito católica. Consequentemente, os temas do catolicismo emergem nas histórias que conto.”

Música
“Grandes diretores fizeram obras-primas sem música. Mas, para mim, ela é a terceira imagem. Quando escrevo uma história, prevalecem cenas em que a música é obrigatória. No passado, você filmava, editava e depois convidava um compositor para dar uma olhada no filme e fazer as músicas. Geralmente, o diretor seguia para a sala de gravação, projetava-se a sequência, e ele discutia com o compositor o que deveria ser adicionado. Com o passar do tempo, isso ficou mais complexo. Hoje, idealmente, você deve ter a música antes ainda da edição, pois pode incluir ou cancelar um instrumento de maneira muito mais simples. Há 50 anos, tinha que trabalhar muito mais para fazer isso.”

Operação Mãos Limpas
“Foi um momento inesperado. Ninguém poderia prever a opinião pública. Como cidadão comum, não imaginava que o sistema político fosse corrupto, que grandes instituições iriam desmoronar, que tantos poderosos seriam presos. Não sei falar especificamente sobre outros países, mas sei que existe um fenômeno de corrupção difundido. Aquele acontecimento (na Itália) se transformou em novos partidos políticos. Alguns juízes, que se tornaram fenômenos, hoje desapareceram. Agora estamos em novo momento de tensão por parte da opinião pública. Há o Movimento 5 Estrelas (M5S, surgido em 2009, sob a liderança do comediante Beppe Grillo, que propõe que cidadãos comuns assumam o poder). Ele tem um sucesso extraordinário e corre o risco de governar a Itália. Esse fato demonstra que os cidadãos não se reconhecem mais nas instituições, têm desprezo pela política e não acreditam mais no voto.”

Cinema Novo
“Minha experiência com o cinema brasileiro é de 50 anos atrás. O que ocorreu, naquela época, é que havia um grande momento de renovação com o Cinema Novo. Conheci muitos de seus cineastas pessoalmente. Na Itália, algumas exceções à parte, a presença do cinema brasileiro diminuiu muito nos últimos 10 anos.”


A repórter viajou a convite da Mostra de São Paulo

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