Com 'Que horas ela volta?', Anna Muylaert diz ter feito 'espelho' do Brasil atual

Em filme sobre relação entre mães e filhos, diretora colocou em cena "a arquitetura dos afetos" e abriu discussão sobre a viabilidade de se "educar sem sentimento"

por Mariana Peixoto 27/08/2015 08:15

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GULLANE FILMES/DIVULGAÇÃO
Uma casa no Morumbi, bairro nobre de São Paulo, é o local onde se passa a trama de 'Que horas ela volta?', em que a chegada da filha da empregada muda a rotina da família (foto: GULLANE FILMES/DIVULGAÇÃO)
Desde janeiro, quando foi lançado no Festival de Sundance, nos EUA, vencendo o prêmio do júri de atriz (dividido entre Regina Casé e Camila Márdila), 'Que horas ela volta?', quarto longa-metragem de ficção de Anna Muylaert, vem fazendo carreira ascendente no exterior. Também venceu prêmio em Berlim (dois troféus na Mostra Panorama) e foi vendido para quase 30 países, a maior parte deles europeus.


Mas a grande expectativa da diretora paulistana é para a estreia nacional, nesta quinta-feira em 80 salas. Afinal, 'Que horas ela volta?' é um filme sobre o Brasil de hoje. Teria sido outro, fosse filmado 20 anos atrás, quando a diretora criou a história de uma empregada doméstica nordestina que reencontrava, depois de anos sem vê-la, a filha adolescente.

 

 

 

No primeiro esboço de roteiro, também assinado por Muylaert, Val, a protagonista, era uma mulher negra, líder espiritual. Jéssica, sua filha, cumpriria o destino esperado para uma filha de empregada. Repetiria o caminho da mãe, o que a cineasta chama de “maldição social”.

Só que hoje o Brasil é outro. “Existem as cotas para negros, existe uma discussão de cidadania. 'Que horas ela volta?' não é só um filme, é um espelho, a proposta de um debate. E vai causar controvérsias”, aponta a diretora.

O cenário do filme é uma casa no luxuoso bairro do Morumbi, em São Paulo. Val (Regina Casé) é uma nordestina pobre que deixou a filha Jéssica (Camila Márdila) aos cuidados de parentes em Pernambuco para trabalhar como babá numa família de classe alta em São Paulo. Treze anos mais tarde, ela continua com a família, administrando a casa de Bárbara (Karine Telles) e Carlos (Lourenço Mutarelli). Também se considera uma segunda mãe de Fabinho (Michel Joelsas). Sua filha decide ir para São Paulo, para prestar vestibular de arquitetura. É recebida de forma cordial pela família. Só que, ao não seguir as regras de convívio entre patrão e empregado, dá início a uma série de conflitos.

REGRAS No exterior, onde tem sido exibido com o título 'The second mother' (A segunda mãe), 'Que horas ela volta?' teve recepções que surpreenderam Muylaert. “(Na Europa) uma pessoa chegou para mim e disse que o filme era empowering. Fiquei tentando entender aquilo, até que vi que esse é um filme de empoderamento. Ele dá essa sensação de que você pode quebrar as regras. Ninguém está te impedindo. Aqui, há também um encantamento, mas, ao lado disso, vêm outras coisas, negativas e positivas. Eu tinha que fazer esse filme agora, ainda mais com as discussões (sociais) num nível tão chulo quanto estão.”

Boa parte desse encantamento que atinge as plateias, independentemente de seu país de origem, vem da interpretação de Regina Casé. Atriz bissexta desde que emplacou como apresentadora de TV, ela foi sempre a única opção de Muylaert para interpretar Val. “A Regina é um Chaplin. É capaz de fazer um balé com a reprodução de seus gestos. O trabalho dela é muito físico. Então, eu a deixei solta, dentro da função de cada cena.” Deu também espaço para que ela improvisasse bastante. Há quem preveja uma indicação ao Oscar de melhor atriz. Muylaert, por ora, mantém os pés no chão. “Eu me divirto com as especulações, mas não acredito em nada até que se prove o contrário.”

Como escolheu como protagonista uma pessoa muito conhecida do público, a cineasta decidiu completar o elenco com atores menos famosos. Camila Márdila não era sequer uma opção para a diretora. “Num primeiro momento, achei-a branca demais. Queria alguém com uma cara nordestina. Depois de uma manhã inteira, vieram me dizer que quem estava sendo preconceituosa era eu. Por que uma nordestina não poderia ser branca?”, conta a diretora.

Ainda que a questão social seja ponto crucial de 'Que horas ela volta?', o filme também traça um retrato dos afetos – Val se sente muito mais próxima de Fabinho do que de Jéssica. “Quando estava filmando, vi que estava fazendo uma arquitetura dos afetos. Nesse sentido, o filme é bastante feminino, pois o que está em questão é o ponto de vista da mãe (tanto a que cria quanto a que gera). É possível educar sem sentimento?”, diz Anna Muylaert.

NO BATENTE
Confira outros longas nacionais sobre empregadas domésticas

>> 'Romance da empregada', de Bruno Barreto (1988)
Empregada que sofre com as exigências da patroa e com o marido bêbado e desempregado encontra homem bem mais velho que quer se casar com ela. Ela sonha com uma vida melhor, quer ser Tina Turner e comprar o seu próprio barraco.

>> 'Domésticas, o filme', de Nando Olival e Fernando Meirelles (2001)
Cotidiano de cinco amigas, todas empregadas domésticas. Cada uma convive com seus problemas (o casamento ruim, a falta de emprego, a filha adolescente). Todas têm diferentes visões do paraíso, mas têm que conviver com a vida real, a dura vida de doméstica.

>> 'Trair e coçar é só começar', de Moacyr Góes (2006)
Adaptação da peça teatral homônima de Marcos Caruso, montagem que teve temporadas recorde. Intrometida empregada doméstica que trabalha em um condomínio de classe média alta supõe que o patrão, que está completando 15 anos de casado, está tendo um caso. Isso detona uma série de confusões e interpretações erradas sobre o casamento.


Regina Casé já atuou em vários outros filmes. Confira lista:

 

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