Radicada em Minas, documentarista premiada faz seu primeiro longa de ficção

Marília Rocha conta a história de portuguesas que vêm para BH em busca de seus sonhos. A cineasta redescobre a cidade

por Gracie Santos 26/10/2014 00:13

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Bianca Aun/Divulgação
Francisca Manuel e Elisabete Francisca Santos, atrizes portuguesas que protagonizam 'A cidade onde envelheço', de Marília Rocha, com estreia prevista para meados de 2015 (foto: Bianca Aun/Divulgação)
Marília Rocha diz que o cinema a leva para longe e a traz de volta para o seu lugar. Goiana que vive em Belo Horizonte desde 1996, a cineasta de 36 anos tem carreira (profícua) dedicada ao documental. Coloca sua assinatura (única) no sensorial Aboio (2005), melhor longa do 10º Festival É Tudo Verdade; no poético Acácio (2008), sobre um casal de portugueses, o etnólogo Acácio Videira e Maria da Conceição; e no delicado A falta que me faz (2009), exibido no mais importante festival de obras experimentais do mundo, o de Roterdã (Holanda). Marília costuma passear pela intimidade dos personagens explorando com sutileza a singularidade de cada um. Ao mesmo tempo em que se envolve com os temas, parece ir se descobrindo.


A cineasta acaba de rodar em Belo Horizonte e Salvador a sua primeira ficção, A cidade onde envelheço (divide o roteiro com João Dumans e Thaís Fujinaga). Mas confessa não estar certa sobre o gênero do longa, que será lançado em 2015: “Não sei se é uma ficção documental ou um documentário ficcional”, divaga. Fruto de pesquisa de cerca de um ano e meio, o filme conta a história de duas portuguesas que vieram para o Brasil. “Neste momento de crise, o país é um lugar idealizado. É grande o número de portugueses que querem tentar a sorte aqui. Quando chegam, não encontram o que esperavam, o país é caro”, afirma a cineasta. “São jovens que querem recomeçar num lugar que não é delas, buscam pessoas com quem possam encontrar a vida e viver, mas não controlam o resultado de seus sentimentos”, revela Marília Rocha.

O longa começa em Salvador, com a chegada de Teresa (Elizabete Francisca Santos). Da Bahia, ela segue para BH, onde encontra a amiga Francisca (Francisca Manuel), que já vive há algum tempo na capital mineira. “Mostramos os encontros que elas têm. À medida que vão descobrindo a cidade, nasce uma amizade entre elas, laços que se tornam muito fortes,” conta a diretora, que conhecia Francisca Manuel, em residência temporária de BH, e foi a Lisboa procurar a outra atriz.

Cidade descoberta
Encerradas as filmagens, Marília Rocha confessa que fez várias descobertas e hoje pode assegurar que Belo Horizonte é muito maior e mais interessante do que parece. “Quando a gente vive num lugar, vai cristalizando certas coisas, o pequeno circuito do dia a dia é tudo. A cidade onde envelheço me abriu várias camadas. Os encontros que as protagonistas tiveram com pessoas e com vários espaços, eu também tive. Não imaginava o que era morar no Centro”, diz a diretora, que viveu experiência inversa graças ao protagonista masculino, Paulo Nazareth, ator que vive no Palmital, em Santa Luzia. “Ele tem um jeito de olhar para BH totalmente deslocado. O filme fez se abrir pra mim do coração do Centro ao Palmital.”

O fato de Belo Horizonte não ser cidade muito turística nem ter sido muito filmada tem um lado positivo na opinião de Marília Rocha: “Exige muita dedicação para a cidade ser descoberta. Então, o filme trouxe isso, foi uma boa desculpa para mim, que sou de Goiás, conhecer aqui. Nunca morei tanto tempo num lugar. E o longa é também sobre isso. Não planejamos nada e vamos ficando por causa de uma série de encontros e de coisas. Com as duas portuguesas é assim, elas vieram e foram ficando, vendo o rumo que a vida tomaria”.

Interlocução produtiva
Novidade para Marília Rocha é o fato de trabalhar pela primeira vez com roteiro. “É incrível, um processo novo e estimulante. Muito diferente”. Fora do habitual para ela foi também a equipe bem maior. Além de parceiros constantes como a produtora
Divulgação
A experiência anterior conta e, ao mesmo tempo, parecia que era tudo completamente novo - Marília Rocha, cineasta (foto: Divulgação)
Luana Melgaço, contou com profissionais de vários lugares. De Minas, Ana Siqueira fez assistência de direção e Gustavo Fioravante, desenho de som. Do Ceará, vieram Ivo Lope Araújo (fotógrafo) e Thais de Campos (diretora de arte); de Curitiba, Bruno Costa (diretor de produção); de São Paulo, Thaís Fujinaga (corroteirista); de Portugal, além das atrizes Francisca Manuel e Elizabeth Francisca Santos, a pesquisadora Leonor Noivo; da Argentina, Eugenia Castello (assistente de direção).

“Fizemos uma miscelânea para descobrir a cidade. Tem ocorrido uma coisa interessante na produção nacional, essa interlocução, as pessoas estão achando diálogos e afinidades com outras de vários lugares. Agora, vejo essa porosidade”, afirma, contando que no caso de A cidade onde envelheço as atrizes contribuíram muito com a criação, chegaram até a morar na casa que foi locação (na Rua São Paulo, Centro). “Foi um desafio. A Francisca, que fez a Teresa, estava de fato vindo a primeira vez ao país; e chegou na casa onde a outra Francisca já estava. Foi tudo muito vivo. O tempo todo cruzávamos as experiências reais das duas com as personagens para a construção das cenas e dos diálogos”, afirma a diretora.

Em muitos casos, a ideia do roteiro era lançada e a cineasta tinha que seguir o que ocorria a partir dali. “O que senti é que tinha que ter feito os filmes anteriores para chegar às filmagens de A cidade onde envelheço. Tinha muita coisa desconhecida nesse processo, mas percebi que não era uma ruptura, mas um passo além. A experiência anterior conta e, ao mesmo tempo, parecia que era tudo completamente novo”, assegura. O longa está sendo realizado com recursos da Petrobras e Filme em Minas.

Anote este nome
Entre as cenas de A cidade onde envelheço rodadas em BH, destaque para o show do grupo Jonnata Doll & Os Garotos Solventes, na Gruta. A banda de Fortaleza tem feito sucesso no cenário punk rock. Tanto que o vocalista Jonnata Doll (foto) já foi chamado de discípulo de Iggy Pop. Marília Rocha foi atraída pelo trabalho de Jonnata na primeira vez em que o viu, no curta Aquele cara, de Dellani Lima. “A música que ele faz com Os Garotos Solventes e sua performance alucinante são irresistíveis”, garante a diretora.

 

Três perguntas para...
Duas franciscas - Elisabete Francisca Santos e Francisca Manuel, atrizes

O que vocês descobriram de fundamental neste descolocamento para outro país? Suas expectativas foram atendidas?
Francisca Santos – Quando se viaja para um lugar pela primeira vez é mais fácil ter um olhar atento e curioso sobre o que está à volta, as pessoas, o modo de se relacionarem e estar, a arquitetura, a gastronomia... Essa espécie de abertura funciona em dois vértices: traz um olhar e uma perspectiva com menos filtros sobre a nova paisagem, de ver as coisas como se apresentam. Por outro lado, permite-nos entender melhor de onde viemos e como vivemos de onde saímos. Tive essa oportunidade, esse tempo, essa distância. Prefiro não ter grandes ideias, mas disponibilidade para o que der e vier.
Francisca Manuel – Já conhecia alguns estados do Brasil e existe em mim uma ideia romântica desse país, por haver uma conexão espiritual. Vivi em BH em 2011, cidade em que minhas expectativas foram superadas e onde se entende a relação próxima entre dois países que falam a mesma língua. É fundamental viver temporariamente num país, pois só assim iremos entendê-lo como também a nós próprios.

O que Belo Horizonte lhes ofereceu de melhor?

Francisca Santos – BH foi minha porta de entrada no Brasil. Tive a sensação de estar numa selva urbana onde os morcegos voam à noite debaixo de uma só arvore e onde os carros de dia tomam a cidade de assalto. A cidade tem seus encantos, mas precisa de tempo para descobri-los. No apartamento do Centro, o tumulto foi entorpecedor e meio fascinante para uma gringa. Havia uma espécie de condensação de mundos, onde também a pobreza e a doença nos batiam na cara. À noite, tudo fecha e as pessoas somem; é um tudo ou nada. E há, claro, o Mercado Central, o imponente Edifício JK, o Parque Municipal, a sinuca, a carne de sol com mandioca, o jiló, a cachaça e o mamão e a manga, tão deliciosos como em mais lado algum. Partilhar isso pela mão acolhedora de belo-horizontinos foi muito bom. Aprendi a correr entre carros e a dormir com tampões nos ouvidos.
Francisca Manuel – O que BH tem de melhor são as pessoas, penso que os mineiros têm algumas semelhanças com portugueses, por algumas características como desconfiança e introspecção. Fora da cidade, a paisagem é semelhante à do Norte de Portugal; dentro de BH é uma paisagem particularmente caótica.

Como foi a experiência de atuar no longa de Marília Rocha?

Francisca Santos – Foi muito intensa e desafiante. Foi minha primeira experiência como atriz. Mesmo tendo percebido que cada filme é um filme e o modo de o fazer difere muito de realizador para realizador, tenho a sensação de que fazer esse longa foi algo único, o ‘nunca fiz nem vivi isso antes’ era recorrente no meu pensamento. E isso é absolutamente maravilhoso. Uma das coisas que marcaram mais foi a improvisação. Pouca coisa estava fechada. Por outro lado, Marília Rocha tentou ao máximo que essa ficção tivesse o maior contato possível com a realidade. Muito do filme foi revelado ao longo do tempo de trabalho, com a nossa vivência e com o ir conhecendo melhor a cidade e sentindo esse deslocamento. Acho que para todos foi um bom mergulho. Pelo menos assim espero. Admiro Marília e espero voltar em breve. Parece que já tenho saudades.
Francisca Manuel – Foi incrível, um trabalho em equipe pelo qual nunca tinha passado. Admiro a Marília pela confiança total em nós, quando reinava a improvisação. Houve todo um trabalho de atuação e pesquisa, que foi possível pela minha relação com a diretora. Às vezes, bastavam olhares ou gestos, naquilo que foi a minha iniciação e viagem à frente das câmeras.

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