Projecionistas se adaptam aos novos formatos de exibição digital

Com muitos anos de profissão, profissionais mesmo atualizados, eles não escondem a predileção pela película

por Mariana Peixoto 31/05/2014 06:00

INFORMAÇÕES PESSOAIS:

RECOMENDAR PARA:

INFORMAÇÕES PESSOAIS:

CORREÇÃO:

Preencha todos os campos.
Túlio Santos/EM/D.A Press
Rufino Gomes de Araújo e Mercídio Scarpelli na sala de projeções do Cine Humberto Mauro: 50 anos comandando as máquinas (foto: Túlio Santos/EM/D.A Press)


A pequena Coluna, no Vale do Rio Doce, nunca tinha presenciado aquilo. Muito menos Valdir Inácio Guimarães, então com 8 anos naquele 1957. Mas enquanto os meninos – e também muitos adultos – se aglomeravam em frente à tela de cinema montada na praça central, ele olhou de esguelha. Interessou-se mais pelo caminhão e pelos homens que mexiam no maquinário, a fonte daquelas imagens que eram projetadas para toda a cidade. Aquela imagem – e a sensação por ela provocada – ficou marcada em Valdir quando ele, já em Belo Horizonte e casado, pensava em aumentar a família. Mas o que conseguia como alfaiate, em meados da década de 1970, não bastava. Tinha que ter carteira assinada. O amigo de um amigo sugeriu: “Vá no Cine Brasil, estão precisando de um operador”. Lá foi Valdir ao grande cinema da Praça Sete e, ao dar de cara com o maquinário, voltaram à mente as sensações do menino de Coluna.

Valdir e também Mercídio Scarpelli e Rufino Gomes de Araújo já foram chamados operadores cinematográficos, depois projecionistas. Com a transição digital, em que a projeção de cinema vem migrando do formato 35 milímetros para o digital, sua atuação também vem mudando rapidamente. “Hoje, qualquer menininho roda um filme, pois tudo é no computador, em HD (disco rígido). Você coloca na pasta, dá um play e pronto, acabou”, afirma Rufino, projecionista há 49 anos e, desde 2008, funcionário do Cine Humberto Mauro, função que divide com Mercídio, este com 54 anos atrás de um projetor de cinema.

As mudanças na tecnologia já eram esperadas, e eles buscam se aprimorar como podem. “Quando comecei a trabalhar, o projetor era a carvão, não tinha filme estéreo, era tudo mono. Ainda peguei muito filme em preto e branco. O dolby (stereo) foi uma revolução, com a lâmpada, o carvão foi deixado de lado. Mas sempre trabalhei um ponto à frente, sempre fazendo reciclagem. Agora mesmo estou fazendo uma, pois meu computador ainda é Windows 7, e já não se usa mais”, afirma Valdir, que completou em 1º de maio 38 anos como projecionista – trabalha atualmente no Cine Cidade.

E a experiência ensina: a projeção em película 35mm faz diferença. “Parece mais viva, original. Quando você chega perto da tela (com exibição digital), vê que não é igual”, comenta Mercídio. Rufino vai na mesma linha: “Daqui a uns cinco anos acho que o digital vai superar o 35, mas este não vai acabar. A película tem corpo, profundidade, acho que vão criar nos shoppings salas especiais para a projeção. O digital é que vai ser o comum”.

A vida em uma cabine de projeção de cinema é para os fortes. Não há fim de semana, Natal, ano-novo. Valdir, que passou por várias grandes salas importantes do cinema de rua de BH (somente no Cine Brasil foram 19 anos como funcionário), já ensinou 28 pessoas a se tornarem projecionistas. Somente dois, e os mais jovens, continuam na profissão. Mas o que guarda dali ninguém tira dele. São histórias como as vividas por Alfredo, o saudoso projecionista interpretado por Philippe Noiret em Cinema Paradiso (1988).

Durante a ditadura militar, Valdir foi um dos operadores credenciados para exibir filmes para os censores – havia uma cabine especial no próprio Cine Brasil. “Você tinha que ficar de bico fechado, nem na minha casa eu contava”, relembra. “Com uma lanterna, eles (geralmente eram dois censores) mostravam a parte e eu vinha com um papelzinho e marcava o filme. Quando terminava, iam lá para dentro e eu cortava na presença deles. Emendava, pegava o rolo, colocava na lata e davam um documento. Se alguém reclamasse no cinema (de uma cena cortada), o gerente mostrava o documento.” Valdir assistiu, antes de todos e sem cortes, filmes polêmicos como Calígula (1979, que só foi ser exibido em BH 12 anos mais tarde) e Último tango em Paris (1972). “Este nem passou (na época), o exibidor achou melhor não passar. Só muitos anos mais tarde ele entrou no Cine Jacques.”

PULGUEIROS

Com Mercídio o problema não foi com a censura. Como sempre trabalhou em cinemas de bairro, que exibiam os filmes tempos depois de eles terem estreado no circuito do Centro, trabalhava com cópias já gastas, muitas faltando pedaços. Foi chamado mais de uma vez de ladrão, mas foi na Humberto Mauro, onde é funcionário desde 1986, que passou o maior aperto. “Foi com o filme Caçador de androides (Blade runner, de 1982). Na hora que iam matar um androide tive que trocar de uma máquina para outra (já que um longa-metragem tinha vários rolos de filme) e, quando fiz isso, pulou uma cena e ele apareceu quando já tinha morrido. O cara que estava no cinema disse que ia me pegar, que eu estava roubando. Quando fui embora, com medo de apanhar, o guarda (do Palácio das Artes) me levou até o ponto de ônibus.”

Já Rufino lembra que isso sempre acontecia com os cinemas de bairro. Quando começaram a nascer as salas de shopping, os famigerados multiplex, ele viu a situação mudar. “Eram os chamados pulgueiros que tinham esse problema, os de shopping sempre foram com fita zerada.” Apaixonado por cinema desde o primeiro filme que assistiu – Marcelino pão e vinho (1955), aos 11 anos, no cinema do navio que o trouxe, com toda a família, da Portugal natal para o Brasil –, afirma que independentemente das mudanças, o que importa é a paixão. “Tenho projetor de 35, 16, super-8, e tudo está funcionando. Mas não é para passar filme longo, é para mostrar para os conhecidos como é o cinema. Todo operador gosta de ver a máquina rodando. Isso não morre não”, conclui.



Festivais acompanham tendência

A digitalização do cinema não chegou somente às salas dos grandes centros. Os festivais, muitos deles realizados em cidades que não têm sala de exibição, também vêm sofrendo modificações. O engenheiro eletrônico José Luís de Almeida é figura conhecida de vários deles. Hoje em dia, monta cinemas (de projetor à tela grande, dependendo da demanda) em 40 eventos cinematográficos. Neste fim de semana, por exemplo, com sua equipe da AllTech, está em Ouro Preto, para o CineOP.

Evento que tem como foco a preservação do cinema, exibe boa parte de sua programação de filmes antigos, muitos deles históricos. Mas somente cinco dos 59 filmes da programação desta edição são em película. Todos os outros são digitais. José Luís conta que em outros eventos do gênero a situação é semelhante. A Mostra de Tiradentes, em janeiro, pela primeira vez não exibiu nenhum filme em película. O Festival de Recife, em abril, tinha somente um longa em 35mm.

“Nem sei se os projecionistas vão continuar a ser chamados assim, a história mudou da água para o vinho. Para manipular os novos equipamentos você tem que saber informática. Hoje, a máquina já corrige defeitos, a gente mexe um pouco para deixar no padrão. Mas o projecionista é quem tem o senso do espetáculo.” No entanto, para ele a exibição em 35mm é insuperável. “Em termos de fotografia, nada melhor do que a película. É um engodo dizer que captou em digital, fez o transfer em 35mm e é a mesma coisa. A resolução na tela é digital. No cinema, você capta em película, revela o filme, faz a montagem. Aí sim é cinema em 35mm.”

MAIS SOBRE CINEMA