Mestre do documentário no Brasil, Eduardo Coutinho deixa legado marcado por experimentação e pioneirismo

Autor de 'Cabra marcado para morrer' (1984) e 'Edifício Master' (2002) foi morto aos 80 anos no Rio

por Bossuet Alvim 02/02/2014 16:42

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Bianca Aun/Divulgação
Coutinho: ''Todo filme, um pouco, você faz para você, e torce para que passe para os outros'' (foto: Bianca Aun/Divulgação)
O último filme de Eduardo Coutinho foi, desde a idealização, um presente do diretor para si. "Exclusivamente para o meu prazer", declarou o cineasta sobre o processo de filmar 'As canções' (2011), em agradecimento a um prêmio conquistado pelo filme. No longa, o diretor reuniu 18 pessoas — de um total de 42 entrevistados — que apresentam à câmera suas canções favoritas, interpretando-as como podem e sabem. A única orientação destes anônimos em suas performances são as ligações afetivas que possuem com as faixas. Premiado no Festival do Rio em sua categoria, o filme tornou-se derradeiro na trajetória do cineasta, assassinado neste domingo, 2, no Rio de Janeiro.

 

Relembre a carreira de Eduardo Coutinho em fotos

 

Singela em roteiro e produção, a última investigação de Coutinho coroa com lirismo uma extensa filmografia de realidades cruas, como a relatada por habitantes de um povoado no sertão paraibano em 'O fim e o princípio' (2005) ou aquela refletida no  discurso político de operários metalúrgicos em 'Peões' (2004). Mas o trabalho com as músicas não seria, segundo o próprio, seu único projeto de realização pessoal. "Todo filme, um pouco, você faz para você, e torce para que passe aos outros", afirmou o diretor no agradecimento pelo troféu de 'As canções'. 

 

Nascido há quase 81 anos em São Paulo, Eduardo Coutinho estudou cinema no tradicional Institut des Hautes Études Cinématographiques, em Paris, que tem entre seus alunos ilustres o francês Louis Malle, o britânico Christopher Miles e o brasileiro Nelson Pereira dos Santos. De volta ao Brasil, tornou-se adepto do Cinema Novo à mesma época em que envolveu-se com a ala cultural da União Nacional dos Estudantes. Em Belo Horizonte, pela UNE, dirigiu a montagem da peça 'Mutirão em nosso sol', em colaboração com o dramaturgo Chico de Assis, durante o Congresso dos Trabalhadores Agrícolas, em 1962.


Foi nesta época que o Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE iniciou a produção de 'Cabra marcado para morrer', um longa de ficção baseado na história de João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas em Pernambuco. Escolhido para dirigir o projeto, Eduardo Coutinho chegou a coordenar 15 dias de filmagens com o elenco, formado por camponeses locais.

 

A eclosão do Golpe Militar de 1964 levou à prisão de parte da equipe — formada por militantes do movimento estudantil — sob a suspeita de práticas comunistas. Com a intervenção dos militares e o reforço da censura, o projeto do longa foi adiado por 20 anos. Com os negativos resgatados em 1981, Coutinho refez contato com os personagens da história real e criou um relato sobre a opressão nos tempos da ditadura. Após a conclusão, em 1984, 'Cabra marcado para morrer' tornou-se obra-prima do artista, premiada em diversas mostras nacionais, latino-americanas e no Festival de Berlim.

 

Investigativo e experimental

Na década de 1970, Coutinho assinou roteiros de ficções como 'Dona Flor e seus dois maridos' (1976), de Bruno Barreto, ao mesmo tempo em que mantinha em exercício a veia documentarista através do programa 'Globo repórter' (TV Globo), onde assinou produções ousadas de jornalismo investigativo por duas décadas. Após dirigir a comédia 'O homem que comprou o mundo' (1968) e o drama 'Faustão' (1970), baseado na obra de Shakespeare, o cineasta passou a dedicar-se quase exclusivamente ao relato de histórias reais.

 

Relato e popularidade

Em 45 anos de atividade, Eduardo Coutinho assinou produções que são referência do gênero no Brasil, como 'O fio da memória' (1991), 'Boca de lixo' (1993) e 'Os romeiros de Padre Cícero' (1994). A explosão de popularidade viria com o lançamento de três filmes que venceram a resistência do público geral em relação a documentários. 'Santo forte' (1999), que lida com o ecletismo religioso em bairros e comunidades de periferia, levou mais de 18 mil espectadores aos cinemas. O longa foi seguido de 'Babilônia 2000' (2000), um olhar sobre os preparativos de moradores para a festa de ano-novo em um morro do Rio de Janeiro, assistido por cerca de 15 mil pessoas.

 

O interesse despertado por ambos resultou na procura significativa por 'Edifício Master' (2002), que reúne entrevistas com moradores de um condomínio residencial em Copacabana. Marcado pelo contraste de comportamentos e personalidades que dividem um espaço comum, o longa teve bilheteria em mais de 86 mil espectadores. Vencedor do Kikito de Ouro de Melhor Documentário no Festival de Gramado, o filme aproximou a obra de Coutinho do reconhecimento pela classe-média, que se via refletida na fala de seus personagens.

 

Reflexão da linguagem

Explorador de caminhos inusitados em cenários comuns, o diretor se aprofundou na reflexão sobre a dualidade do documentário em trabalhos mais recentes. 'Jogo de cena' (2007), coloca atores famosos como protagonistas de relatos oferecidos por pessoas desconhecidas.

 

'Moscou' (2009), seu penúltimo filme, acompanha a preparação de atores nos bastidores de uma peça de Tchekhov. Com linguagem próxima ao improviso, a obra é marcada pela busca de Coutinho pela isenção de intervenção. "Creio que a principal virtude de um documentarista é a de estar aberto ao outro, a ponto de passar a impressão, aliás verdadeira, de que o interlocutor, em última análise, sempre tem razão. Ou suas razões", escreveu o diretor em 1992 para o catálogo do Festival Cinéma du Réel.

 

No ano passado, quando completou 80 anos, Eduardo Coutinho foi homenageado pela Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo. A obra do artista também foi premiada com um Kikito de Cristal no Festival de Gramado, em 2007.  

 

Assista o trailer de 'As canções', o último trabalho lançado por Eduardo Coutinho:

 



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