Lúcia Murat apresenta 'A memória que me contam' e elogia o trabalho dos novos diretores

Mostra exibe outras produções com temática política, como o documentário 'Dossiê Jango'

por Carolina Braga 21/01/2013 08:32

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 (Beto Magalhães/EM/D.A Press)
Filme de Lúcia Murat tem a ditadura militar como pano de fundo, mas se afirma como uma reflexão sobre a amizade (foto: (Beto Magalhães/EM/D.A Press))
Tiradentes – “Ontem já me chamaram de senhora três vezes. Eu falei, ‘pô!’”, brincou Lúcia Murat. Ainda bem que ela leva na brincadeira, porque na 16ª Mostra de Cinema de Tiradentes a cineasta carioca, de 64 anos, é a mais experiente do grupo de criadores que exibirão seus trabalhos até sábado nas telas do festival. Curiosamente, 'A memória que me contam', longa exibido em pré-estreia no Cine Tenda, é uma delicada abordagem sobre a relação de um grupo de amigos que resistiram à ditadura militar e os jovens que os cercam.

Muito próxima da nova geração por causa da filha, a também cineasta Júlia Murat, Lúcia está longe de se sentir uma estranha no ninho dedicado aos realizadores em início de carreira. “Na medida em que a minha filha cresceu e passei a ter contato com essa turma, acho ridículo falar em atualizar. É uma vivência. Um outro olhar que para mim tem sido muito importante. A geração deles tem uma força que nenhuma outra teve desde o Cinema Novo. Força como coletivo, como proposta estética”, analisa.

Em seu novo longa, Murat dialoga com o presente, sem esquecer o passado. Principalmente o dela, marcado pela militância e posturas ideológicas. “Diria que o filme é um balanço de geração. A relação entre minha geração e seus filhos”, explica a diretora. 'A memória que me contam' vai além. Tendo a ditadura brasileira como pano de fundo, o longa fala sobre as utopias da geração que lutou pela democracia, mas é, sobretudo, um tratado sobre a amizade sem deixar de lado discursos sobre o peso do passado, papel da política e da arte na vida das pessoas.

Bem antes de o diretor canadense Denys Arcand abordar o tema em 'O declínio do império americano' e em 'As invasões bárbaras', Lúcia Murat já elucubrava ideia parecida. “Ele me roubou a ideia duas vezes. Queria fazer um filme com um bate-papo. Minha geração tem uma necessidade muito grande de falar”, diz ela. Desde o início, a perspectiva era filmar dentro de um hospital, em torno de uma pessoa doente. A inspiração veio da amiga Vera Magalhães, companheira de luta no período da ditadura, que tinha dom especial para reunir os amigos em torno dela para uma boa conversa, inclusive no período em que esteve hospitalizada. “Sempre que estava doente ficava aquele papo enlouquecido em torno das memórias, da política, do cotidiano. Nunca tive coragem de fazer. Depois que ela morreu eu resolvi escrever”, detalha. Vera faleceu em 2007.

Utopia

“Os personagens de 'As invasões bárbaras' têm uma vivência da mesma época que a minha. Tem aquela utopia, mas eles não sofreram. Minha geração, ao contrário deles, foi torturada, assassinada, passou por um sofrimento barra pesada e, ao mesmo tempo, hoje está no poder”, comenta. A diferença entre o filme dela e o de Denys Arcand é que, ao retratar os jovens, a brasileira opta por não caricaturar o vazio utópico. Em vez de drogados e capitalistas, são pessoas com preocupação social e artística. No filme, Simone Spoladore é Ana, figura que simboliza a memória do que Vera representou para os amigos. Irene Ravache interpreta o alter ego de Lúcia Murat.

Apesar de ser inspirado em algumas pessoas do círculo de amizade da diretora e da inclusão de imagens de arquivo do período da ditadura, 'A memória que me contam' é obra de ficção. Como costuma alternar gêneros, o próximo trabalho de Lúcia, o longa 'Quatro histórias e meia', será um documentário no qual retomará a história da tribo indígena kadiwéu, abordada por ela no filme 'Brava gente brasileira'. “Viabilizar documentário é mais fácil. Mas tem também uma necessidade própria. São dois mundos muito diferentes que gosto de aproximar”, conclui.

Em nome da história e contra o esquecimento


Além de 'A memória que me contam', a exibição em Tiradentes do documentário 'Dossiê Jango', de Paulo Henrique Fontenelle, reforça a safra de filmes latino-americanos que propõem olhares diferenciados sobre os períodos de ditadura da região. Assim como a produção chilena 'No', de Pablo Larraín, o longa de Lúcia Murat incentiva uma reflexão sobre o tema, sem necessariamente ser explícito. Para Lúcia Murat, a sutileza da produção contemporânea é fruto do tempo. “Quando fiz 'Que bom te ver viva' (1984) a dor ainda era muito presente. A relação do filme era muito próxima. Hoje não. Realmente é o passado”, diz.

Mesmo sendo um documentário, a obra de Fontenelle tem o mesmo propósito. “É um documentário que ao mesmo tempo é um thriller de política, uma obra que pareceria de ficção se não fosse verdade”, descreve. Produzido nos últimos três anos, 'Dossiê Jango' investiga as razões da morte do ex-presidente João Goulart. A partir da entrevista de um agente secreto uruguaio, o diretor procura entender os mistérios que envolvem Jango em seu exílio. Temas como a participação americana no golpe brasileiro, a inoperância do Estado na investigação e o descaso com os mortos da ditadura são abordados no documentário.

“Acho que o que está levando a América Latina a finalmente discutir esse período é que se trata de uma história que nunca acabou e sempre foi escondida debaixo do tapete. Na Argentina até houve julgamento, existem memoriais. No Brasil pouco se fala. É como se as coisas fossem se ajeitando aos poucos, mas a ferida continua aberta. Os filmes são importantes para conhecer um pouco sobre nossa história”, defende Paulo Henrique Fontenelle.

* A repórter viajou a convite da organização da mostra.


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» Cine Tenda
15h – Longa –Sudoeste (ficção, de Eduardo Nunes)
18h – Curtas – O tradutor, de Grace Iwashita; Fui à capadócia e lembrei de você, de Larissa Figueiredo; Invisíveis, de Anderson Fregolente; Mauro em Caiena, de Leonardo Mouramateus; Serra do Mar, de Iris Junges.
19h30 – Longa, Mostra Aurora – Ventos de Valls (documentário,
de Pablo Lobato)
22h30 – Curtas – Olho mágico, de André Sampaio; Pátio, de Aly Muritiba; Mãos mortas, de Arthur Tuoto; Orwo foma, de Karen Black e Lia Letícia; Púrpura, de Tavinho Teixeira; O Ouvido de Vinicius, de Sergio Oliveira e Ezequiel Pierri
» Cine Praça
21h – Curtas – Linear, de Amir Admoni; Aluga-se, de Cris Azzi; Quinto andar, de Marco Nick; Passo compasso, de Caroline Fioratti; Arremate, de Rodrigo Luna
» Cine Tenda Bar Show
0h30 – Blue Drop Jazz Quartet

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