Federico Fellini, um diretor sempre atual

26/07/2008 12:37

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Divulgação %u2013 1956
Giulietta Masina é Gelsomina em Na estrada da vida, filme do diretor italiano Federico Fellini que leva o neo-realismo a outro patamar (foto: Divulgação %u2013 1956)
“O neo-realismo era apenas o começo. Em vez disso, eles pensaram que fosse um fim, uma idade de ouro. Por isso, chamaram-me traidor do neo-realismo” – assim se referiu o diretor Federico Fellini, em meados da década de 1950, a um grupo de críticos italianos que reduziram à abjeção o filme que lançava na época, Na estrada da vida (La strada, 1954). Fellini, traidor? Se o único neo-realismo aceitável fosse o de Ladrões de bicicletas (1948) ou o da teoria irrealizada de Cesare Zavattini (a câmera espectante), Na estrada da vida, talvez pudesse ser o resultado de uma traição; mas o neo-realismo não foi apenas isso, sua passagem à história do cinema não se deu em virtude de umas tantas vezes alegada integração dramática do ambiente à história, da paisagem à intimidade do homem e, por intermédio desse, à realidade do universo fílmico. Diziam os exegetas do neo-realismo – os nativos como o roteirista e crítico marxista italiano Guido Aristarco e os alienígenas como o jornalista e crítico francês comunista Georges Sadoul – que a decoração deixara de ser uma simples superfetação da matéria narrada, um adorno caligráfico, juntando-se às categorias máximas da nova “realidade” descoberta pelo cinema italiano. Nessa atitude, nada mais faziam do que reelaborar uma velha teoria reacionária do diretor russo Vsevolod Pudovkin, para quem cinema entre quatro paredes seria uma invenção burguesa. Fora desse esquema, que incluía certo parti pris cosmológico na consideração dos problemas (todas as vezes que os temas fugiam dos conceitos primitivos do homem-ambiente-sociedade, os teóricos entravam em crise, criando significados novos e interpretações renovadas daquilo que se lhe oferecia: foi o caso, por exemplo, de Crimes d’alma, de 1949, dirigido por Michelangelo Antonioni), o neo-realismo. Era contrafação, era traição. O esquema sufocou o neo-realismo; o cosmológico (a natureza como centro, a ambientação contemporânea e pobre elevada à posição de dogma) derrotou os cineastas, que, também eles, entraram em crise. De Sica aderiu ao grande espetáculo em O ouro de Nápoles (1954). Renato Castellani se refugiou em Romeu e Julieta (1954). E Luchino Visconti, depois de ter passado de braços cruzados pelo neo-realismo, partiu para Sedução da carne (1954), negação liminar da teoria neo-realista (para ele, porém, gênio que era, criou-se um neo-neo-realismo, que até hoje não houve quem pudesse explicar).

Considerado em relação ao neo-realismo – o que não lhe fornece a interpretação desejada – Na estrada da vida é a sua transfiguração. Fiel à escola italiana, Fellini foge, todavia, das limitações acima apontadas. Seu cinema surge de uma reavaliação dos problemas humanos, um novo humanismo ao mesmo tempo romântico e realista. A principal, talvez a única contribuição do neo-realismo à arte do filme foi o novo homem que revelou, a transformação legitimamente revolucionária de simples tipos em personagens com os quais o cinema se enriquecia e a Itália se recompunha do pesadelo fascista. A natureza, o ambiente, o decorado, tudo isso entrava como acessório, como elemento ocasional que mantinha com o principal aquelas inter-relações estruturais da época com a arte nela produzida. Vencida a época, deveria forçosamente ser vencida a impostação semidocumentária atribuída ao neo-realismo, não fossem os teóricos dessa escola, que a pretenderam eternamente aprisionada àquilo que não lhe era próprio ou fundamental, a “idade de ouro” de Roma, cidade aberta (1945), Paisá (1946) ou Ladrões de bicicleta. Federico Fellini seria um dos arautos do novo neo-realismo, para o qual o panorama em nenhum instante deixa de ser simples moldura para o quadro principal, o cerne dramático que diz respeito ao filme como legítima criação artística. Pois, a não ser em superfluidades, até onde irá a diferença existente entre Umberto D e Na estrada da vida?

Realidade recriada pelo cineasta

O primeiro, aprofundando-se no estudo da solidão humana, adota um tom marcadamente naturalista, que já foi comparado ao de Flaubert (e que por isso mesmo mereceu as reservas desses mesmos epígonos teóricos do neo-realismo). Fellini transfigura os termos normais do suposto realismo italiano. Transforma o que era cosmológico em reflexões antropológicas: concentra-se não mais sobre a natureza, mas sobre os personagens, centro e razão de ser de suas considerações cinematográficas.

Por essas razões, Fellini poderia ser tido como neo-realista entre os melhores que melhor o fossem. Zampanò (Anthony Quinn), Gelsomina (Giulietta Masina) e Il Matto (Richard Basehart) são tipos de galeria do novo realismo com que Rossellini e De Sica forçaram as portas da história do cinema. Para tornar óbvia a classificação, tornando-a aceitável também pelos teóricos mencionados, bastaria a Fellini se ter valido de truques ingênuos ou simplórios, um menino chorando de fome, lavadeiras em briga com negociantes de lotes, solidariedades proletárias evidentes etc. etc. etc. Seriam soluções fáceis e talvez razoáveis. Não passariam, porém, de simples diversionismo, acréscimos inúteis à grandeza humana e artística alcançada por Fellini neste significativo triunfo que é Na estrada da vida.

O realismo do filme é um realismo imaginado, recriado pelo diretor sobre os escombros da realidade rasa dos esquemas e das soluções antecipadas. No tratamento dessa realidade íntima, aliás, Fellini leva seu método de transfiguração a limites extremos: em quase todas as seqüências onde entra grande número de figurantes, a cena adquire uma inesperada movimentação, marcada pelos deslocamentos sucessivos da câmera, que impedem a fixação de detalhes e a criação de uma atmosfera organizadamente realista, campo habitual do neo-realismo. Nos momentos, por exemplo, em que Zampanò exibe sua técnica de espetáculo a uma assistência curiosa, as tomadas acompanham os movimentos do artista, emaranhando-se numa dinâmica feérica por cujo intermédio se entrevêem as ligeiras reações dessa platéia. Em nenhum instante o filme assume a posição de expectativa diante da trama principal, que é o de seus três personagens fundamentais. Na seqüência do casamento, Zampanò e Gelsomina são o fulcro emocional da narrativa. Extrapolada, num plano acessório e nunca por demais explícito, está a própria festa do casamento, mostrada em trechos esparsos que recordam, de certo modo, o cinema mudo, na medida em que esse, negando a capacidade de convencimento realístico-mecânico da imagem, apelava para as sugestões da imaginação.

O homem triunfa sobre a natureza

Há, de resto, muito de cinema mudo também na tipologia de Gelsomina, cujas reações fisionômicas são antes de uma máscara que surpreende pelo inesperado do que dos músculos condicionados da face humana (no que se aproxima de Carlitos; a semelhança, porém, só fica nisso, nada autorizando o prosseguimento do paralelismo).

A substância real de Na estrada da vida está na continuidade com que o eterno problema humano é ajustado a ambientes contemporâneos. O filme, fugindo a certo realismo social que tende antes à cópia, ao documentário, do que à criação, evita também o fetichismo subjetivista ultrapassado. Revaloriza o humanismo e o triunfo do homem sobre o animal e a natureza, e neste sentido, inscreve-se na linha de Brinquedo proibido (René Clément, 1952) ou Deus necessita de homens (Jean Delannoy, 1950). Nada tem de filme católico ou paracatólico. A complicação com Na estrada da vida, confessou o próprio Fellini, “é que a Igreja (católica) o encampou, transformando-o em bandeira. A volta ao espiritualismo. Então, o outro lado voltou-se contra ele. Tenho certeza de que se o outro lado tivesse sido o primeiro, a Igreja se voltaria contra o filme”.

O que haveria de simbolicamente religioso em Na estrada da vida? As cenas de procissão, quando Gelsomina se vê atraída pelos signos exteriores da religião, a liturgia em torno da qual a direção de Fellini descreve arabescos, destacando seu brilho e sua pompa? O instante solitário em que Zampanò vence a própria animalidade, voltando-se para a noite que o cobre – reconhecendo-se na luz das estrelas longínquas? Ou as freiras que recebem o casal cristãmente, e são iludidas por Zampanò? A conquista final de Gelsomina e Zampanó é eminentemente moral, a transcendência das condições anormais de uma vida pelo apelo tanto à emoção como à razão. Lançando as bases para um novo “romantismo revolucionário”, o sociólogo francês Henry Lefebvre preconizou o desaparecimento do abismo entre o realismo e o anti-realismo, com o sacrifício do realismo-chão, “pela introdução das imagens extremas e da imaginação libertada, penetrando o ‘real’ – por meio da distorção entre o objetivo e o subjetivo e não da concepção desse último como simples reflexo do primeiro”.

A superação do dilema em que foi colocada a arte moderna realiza-se, mais uma vez, em Na estrada da vida: Gelsomina, Zampanò e Il Matto são elementos marginais, extratemporais, que tanto poderiam pertencer à Idade Média quanto à modernidade. Colocam-se à margem da sociedade e do mundo não em resultado de um conflito de fundamento metafísico, incontornável.

Personagens nutridos a paixões

Se isso se desse no momento em que Fellini tivesse concentrado suas simpatias na justificativa desse isolamento e desse conflito, atribuindo-lhes qualidades positivas, estaria, aí sim, entregando-se a uma aventura deslocada e vencida no tempo, retrógrada. Mas não: os personagens não entram em choque com o mundo ou a sociedade, não buscam a solidão como recurso escapista. Vivem, dentro das dimensões temporais e espaciais que essa sociedade lhes concede, seus conflitos interiores; o que fornece as contradições de que Na estrada da vida se nutre dos sentimentos e das paixões íntimas de Gelsomina, Zampanò e Il Matto, ingênuos, brutos e loucos – e tipos também de um meio social ao qual não se integram, mas do qual participam.

Lefebvre, marxista para quem o marxismo falhou (“e falhou por querer constituir uma individualidade nova pela via ideológica”), acha que para denunciar as “alienações da vida humana” é preciso, antes de tudo, “determiná-las e as compreender”. E não será de mais um tipo de alienação humana que se ocupa Na estrada da vida, a alienação de Zampanò ao animalesco, ao irracional, a alienação de Il Matto ao instante presente, que vive como um irresponsável louco que era – e, apesar disso, um coreógrafo do arame? Gelsomina, vendida por 10 mil liras, está acima do bem e do mal, necrosada por suas dúvidas mais secretas, em nome das quais, afinal, se deixa sacrificar, não para a salvação da alma de Zampanò, que disso o filme não cuida – e se cuidasse, a solução escolhida teria sido sacrílega –, mas para sua própria recuperação humana.

E Gelsomina é Giulietta Masina. Raramente o cinema terá visto tamanha identificação intérprete-personagem como na Giulietta/Gelsomina, particularmente excepcional num filme por tantos motivos excepcional.

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