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Estado de Minas

Lélio Fabiano expõe assédio sexual praticado por sacerdotes seminaristas

Em livro de estreia, o jornalista toca de forma visceral e corajosa numa ferida aberta da Igreja Católica


03/05/2019 09:15 - atualizado 03/05/2019 10:43

(foto: Una.TV/reprodução)
– Não, senhor cardeal, não delatarei os abusos que sofri dos padres do seu seminário que me quiseram enrabar.
Não lhe contarei do padre que nos levava para tomar banho em seu apartamento quando estávamos resfriados, que nos mandava ir tirando a roupa, enquanto regulava as torneiras e ficava olhando com despudor para os nossos corpos nus.
Não lhe denunciarei o sacerdote que baixou as calças sob a batina e pediu para coçar sua barriga balofa e pegar no seu pênis...

Tinha ânsias e vontade de continuar a interlocução imaginária, acrescentando com indignação:
– Jesus pediu perdão para os seus algozes porque não sabiam o que faziam. Seus padres, senhor cardeal, sabiam e eu lhes obedecia por respeitá-los e temer sua autoridade.
Como Sua Eminência informou-se do caso, senhor cardeal? E o inviolável segredo da confissão, quem o rompeu? Um padre confessor do seu seminário?
Não houve nada de mais, senhor cardeal, apenas uma mão passada pela barriga e quando quis segurar o meu pênis, eu não permiti. Eu temia pecar contra a castidade, senhor cardeal.


Esse é o clímax do livro de estreia do jornalista Lélio Fabiano dos Santos, capixaba de Guaçuí que construiu sua vida em Belo Horizonte, após deixar o Seminário Arquidiocesano de São José, no Bairro Rio Comprido, no Rio de Janeiro, onde permaneceu dos 13 aos 23 anos de idade, nos anos 1950/60. Em vez de uma autobiografia, Lélio optou por uma ficção baseada em suas memórias na instituição religiosa, uma obra literária e jornalística repleta de verdades, muitas delas dolorosas, mas ele não guardou mágoas.

Em 'O silêncio do Rio Comprido', quase seis décadas depois de suas experiências no seminário, Lélio dá vida a um menino/adolescente de Alegre, outra cidade capixaba, de família grande, que é levado pelo pai para se tornar padre. Parte daí o testemunho corajoso do jornalista ao revelar o que acontecia entre aquelas paredes, algo impensável naquela época. Ali estavam ele – ou seu alter ego – e outros 59 alunos do dormitório, um salão com oito grandes janelas, do tamanho de duas quadras de basquete, onde ficavam alinhadas 60 camas em seis fileiras de 10 e havia apenas água fria, no segundo andar de uma das alas mais antigas, ao fundo do conjunto moderno do seminário com acesso pela Avenida Paulo de Frontin, por onde corria o filete de água do Rio Comprido.

O garoto começa então a purgar seus pecados. Mas quais pecados? “A ingenuidade do menino que brincava de pique e jogava botão no Jardim Velho não lhe permitia perceber modos diferenciados de comportamento entre muitos padres do seminário, professores das disciplinas das séries ginasiais, que jogavam futebol nos recreios, que davam aulas de canto gregoriano e, muito menos, no padre responsável pela divisão dos menores. Tendo deixado a família pela vocação do celibato, nas questões de sexualidade a ignorância era do tamanho da sua inocência”, diz.

“O pecado mais grave que lhe ocorria fora o de ter olhado a mãe seminua, de costas, quando abrira, inadvertidamente, a porta do quarto de casal e a surpreendeu trocando de roupa. Ela nunca ficou sabendo nem mesmo o padre com quem se confessou porque contou o pecado com o eufemismo: Padre, eu vi bobagem”. E diante do cardeal, para o qual foi levado para receber “explanações sobre as responsabilidades de um pastor de almas e a renúncia que implicava o sacerdócio, Sua Eminência indaga de chofre, olhos buscando olhos, como estava a castidade do candidato”. É um momento de conflito e confronto. “Como em um filme, volutearam na tela da memória sequências de cenas como as das tentativas dos abusos que sofrera e as tentações pelas quais passara. As desagradáveis lembranças constituíam segredos recolhidos e depositados em um confessionário, pecados arrependidos e perdoados, fatos nunca relatados.”

Mas ao ter sua castidade questionada pelo cardeal, que o indaga sobre uma “amizade particular com um colega”, o menino não se contém, e pelo menos na imaginação dá uma resposta à altura para Sua Eminência, porque ali é proibido falar sobre isso, impera o silêncio no Rio Comprido.


MUITO ALÉM
DOS ESPINHOS

A sinceridade e o desprendimento de Lélio em expor fatos espinhosos, entretanto, afloram na esperança. “Por baixo de muitas batinas do seminário da Avenida Paulo de Frontin existiram também homens virtuosos e dedicados à causa na qual acreditavam e que se preocupavam com a educação cidadã dos seminaristas, sintonizando-os com o mundo novo que surgia em um horizonte a menos de cinquenta anos do fim do primeiro milênio”, lembra.

O menino descobriu também o lado bom daquela vida: “Cursando filosofia e já vestindo a sotaina, deixou em uma tarde o prédio da Avenida Paulo de Frontin, dirigiu-se até Copacabana, onde deixou a batina na casa de uma tia, no Bairro Peixoto, para assistir escondido, no Cine Rian, na Avenida Atlântica, ao filme La dolce vita, de Fellini, proibido para seminaristas. Começa a abrir-se para o mundo e a esforçar-se para a compreensão de que a Igreja Católica era mais do que os penduricalhos que lhe foram sendo apostos nos atravessares dos séculos. Considerava que valeria a pena ser um padre dos novos tempos que acreditasse nos evangelhos e em um Cristo revolucionário, criador de uma religião cujo reino ele dizia não ser deste mundo e que viria a ser conhecida, mais tarde, como cristianismo.”

Além do claustro, Lélio Fabiano reconstrói o cenário da época no Rio, então capital da República, os anos turbulentos que vão do suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, passando pela ascensão de JK até a renúncia traumática de Jânio Quadros, em 1961, que abriu caminho para o golpe militar três anos depois. “A política chegava ao seminário com os padres operários oriundos da Ação Católica, movimento que propunha ao mundo polarizado entre comunismo e capitalismo uma visão que pendia, declaradamente, para o lado dos mais humildes e desfavorecidos. Os que pretendiam diferenciar-se subiam os morros cariocas para visitar favelas, trabalhar como as irmãzinhas do Padre Foucaud, que habitavam barracos e praticavam o apostolado vivendo a vida dos deserdados de toda natureza”, descreve ele.

O menino ingênuo que saiu do Espírito Santo para a capital federal descobriu o bem e o mal, deslumbrou-se com a beleza da cidade e com os devaneios do futebol, uma paixão, e começou a crescer, a se tornar homem, e, principalmente, questionar: quero ser mesmo padre?. Assim, Lélio Fabiano relembra seus dias bons e tristes no seminário, com a naturalidade do correr do tempo, admiravelmente, sem destilar ressentimentos.

“A juventude dos vinte anos plenos de fé e da esperança de se tornar padre à compreensão de que havia coisas mais importantes do que a preocupação com o pecado, com o a existência do Inferno para os maus e do Céu para os bons. A própria castidade se tornava consequência e não um fim em si mesmo. As dores do crescimento, as angústias da sexualidade reprimida e os assédios sofridos e vencidos foram sendo processados, sem desmemória, é verdade”, ensina o jornalista e professor, mestre de muitas gerações de profissionais, agora debruçado sobre o véu do tempo.



O SILÊNCIO DO RIO COMPRIDO
• De Lélio Fabiano dos Santos
• Maza Edições
• 111 páginas
• R$ 40



ENTREVISTA

Lélio Fabiano dos Santos

Foi a cruzada do papa Francisco contra os abusos na Igreja que o encorajaram a revelar esses fatos dolorosos e constrangedores quase 60 anos depois?  
Os posicionamentos do papa Francisco me estimularam na urgência de aproveitar o momento. Sou jornalista e queria cumprir uma pauta. As rememorações do livro são resultado de um processo de psicanálise em que o sujeito (Eu) repassa sua vida, seus desejos e seus temores para melhor se situar no mundo. Dedicar-se aos estudos sempre aumenta capacitações e a psicanálise também e sobretudo.

Os abusos sexuais presenciados no seminário pesaram na sua decisão de desistir da vida religiosa, além da sexualidade reprimida?  
Pois é, não existe aqui uma relação de causa e efeito. Dez anos de “estudo para padre” contribuíram para minha compreensão da religião e da religiosidade, que são coisas distintas... A sexualidade reprimida existe na nossa civilização judaico-cristã e costuma ser mais forte em famílias católicas. A minha libertação sexual deu-se a partir dos últimos anos da “internação” na Avenida Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro, e, logo nos primeiros anos depois da alta...

Criar uma ficção memorialista, sem nomes, em vez de uma autobiografia, foi uma forma de facilitar os relatos de tristes lembranças?  
Minha vontade de escrever e botar para fora em livros sentimentos, testemunhos, lembranças e ideias foi o maior impulso para produzir O silêncio do Rio Comprido. A forma literária de um romance fragmentário com personagens “pronominais pessoais” foi uma escolha de estilo. A narrativa montada em um chassi psicanalítico tem, também, muitas lembranças e cenas, digamos, gostosas e felizes!

Décadas depois, qual o sentimento que ficou daqueles tempos? Rancor, perplexidade, perdão? Você manteve a fé?  
Os primeiros 10 anos de minha juventude dentro do seminário passaram como tantas outras coisas que vivi e que ocorreram em quantas décadas que tenho vivido. Meu livro não contém rancor. É jornalístico, narro fatos, analiso comportamentos e me sinto útil para facilitar opções... A fé acaba sendo uma opção pessoal e a minha é a de que assim caminha a humanidade... Não é preciso recorrer a um Deus ou a vários para querer transformar o mundo.

O silêncio do Rio Comprido é uma dor permanente? Sem desmemória, como está relatado no capítulo Apocalipse?  
Não é dor permanente. É um depoimento lá de trás sobre fatos e coisas que acontecem até hoje. Era proibido falar, hoje, ninguém me impede. Escrevi e falei até durante o período da ditadura militar de 1964.


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