"Há livros que se gravam numa literatura e deixam esteira para sempre, assinalando uma revolução na língua e indicando um caminho a ser inevitavelmente seguido. Não são êsses livros pioneiros, que vão surgindo, de tempos em temos, compasso de espera, esquecidos por vêzes, demorando e frutificando ocasionalmente.
São os livros que realizam as tentativas anteriores e chegam na hora certa da mudança por todos aguardada. Não se volta mais atrás, então, e o que não lhe segue a rota apontada já nasce morto ou agonizante.
Nessa luta pela renovação de nossa língua, nessa procura de um vocabulário e, principalmente, uma sintaxe mais adequada ao nosso sentir e pensar, há que lembrar os velhos regionalistas, tão tímidos ainda, que “aspeavam” em suas frases portuguêsas as palavras colhidas nas bôcas sertanejas. Há que lembrar os que mais ousados foram, a seguir: os Oswaldo de Andrade, os Antônio de Alcantara Machado, os Mário Neme, os Jorge Amado e Lins do Rêgo, já escrevendo como falamos, mas sem a visão de uma língua nacional, presos um pouco demais a suas províncias e a seus temas. Esses, entretanto, suprimiam as aspas e perceberam o problema. Há que lembrar, acima de todos os pioneiros, Mário de Andrade, uma primeira realização rica e expressiva, fiel e preciosa da nova língua.
Macunaíma será sempre o ponto de partida, o grande livro pioneiro da literatura brasileira. Até Mário de Andrade, ainda nos vestíamos à européia, ainda usávamos fraque sob o sol dos trópicos. Com êle encontramos uma roupa mais apropriada: estamos de brim agora e sem chapéu.
Mas aparece Guimarães Rosa. A princípio se ensaiando com Sagarana. Admiráveis exercícios de estilo, a que se seguem os não menos brilhantes de Corpo de baile. Brilhantes? Há algo pejorativo no vocabulário: risquemo-lo. E digamos que, com Corpo de baile, alcança o autor a autenticidade que todos buscávamos.
Grande sertão: veredas é, sem dúvida alguma, o nosso grande acontecimento literário e linguístico do século. Está para a possível língua brasileira como a poesia de Villon ao findar a Idade Média. Nada mais tem a ver com os retóricos de então. Mas vai dar Ronsard e o resto.
Não é, porém, só pela língua, que êsse romance me parece excepcional. É também pelo conteúdo. A saga do jagunço, com sua épica e sua lírica, aí se nos oferece. E que lição discreta e honesta de sociologia! E como com ela vemos confirmado o que há de melhor em Euclides! Rejeitado o pedantismo científico, brilhante e falso, solapado o parnasianismo pesado e retumbante, fica o retrato expressionista do ‘homem forte’, como o definia o mestre.
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