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''Nossa produção intelectual é branca'', diz a atriz, poeta e ativista Elisa Lucinda

Em cartaz, no CCBB, com L, o musical, peça que protagoniza com a cantora Ellen Oléria, a multiartista Elisa Lucinda tem se integrado à vida cultural de Belo Horizonte e mantém um ritmo frenético de trabalho. Deve ir ao samba no Divina Luz com o músico Flávio Renegado e lança no sábado (7), na Livraria Quixote, o Vozes guardadas (Record, 2016). Em 2014, ela lançou seu primeiro romance – Fernando Pessoa – O cavaleiro do nada (Record), finalista no Prêmio São Paulo de Literatura em 2015. Com prefácio de Mia Couto, o livro está sendo traduzido para o francês e será lançado em Portugal pela editora Abismo no aniversário do escritor. Elisa está revisando Parem de falar mal da rotina (Casa da Palavra, 2010) para ser relançado. “Não pode ser o mesmo livro, eu avancei. Antes não tinha uma palavra sobre trans. Agora eu dou aula para trans de poesia falada no projeto da Organização Internacional do Trabalho.

A minha literatura cresceu. Hoje leio mais autores africanos.”

No momento, lê Necropolítica, do filósofo camaronês Achille Mbembe, e um livro da moçambicana Paulina Chiziane. Também está terminando um romance, que “tem pegada erótica”, pois acredita que “não deveriam fechar a porta do quarto dos amantes”. Ela brinca com um exemplo: “Então, Gisele e Pedro foram para o quarto com champanhe. Se beijaram. A lua no céu. Fecha a porta.
Próximo parágrafo: Numa manhã linda, acordaram e tomaram café. E a noite? É a noite que descrevo”.

Também está no cinema. Um dos filmes é o Pulo do gato, roteirizado por Marcelo Adnet. “Fiz escova no cabelo, mas sabia que saía no banho. Nunca deixei alisarem meu cabelo nas novelas”. Ainda fala sobre o combate ao racismo no Brasil e da arte contra a “política que ri da cara da gente”. “Este ano é Exu, Iansã e Xangô. Olha o ano.
Tem tremor na Paulista. É um ano de sacode e justiça.”

 

 

 

Como é seu processo criativo?

A poesia é para mim o testemunho do que penso. Há um encontro entre meu olhar e a realidade, é o que gera poesia para mim. Brota em poesia o impacto que a realidade produz em mim. Meu processo é muito espontâneo. Tudo que mexe com meu coração vira poesia.

O que você escreve é muito compartilhado nas redes sociais. Um exemplo é o poema Avisa a lua que menstrua.


É um poema de 1987. Foi muito usado como discurso de gênero. Serviu como narrativa para o novo feminismo que estava nascendo no final dos anos 1980 e durante os anos 1990. Muitas discussões de gênero.

Para minha surpresa e agrado, essa poesia virou camisa nos encontros de mulheres. Os versos viraram faixas e panfletos, fitas, adesivos, bótons. Para um poema é uma honra. Eu não sabia o que era feminismo. Para mim, era mais uma posição humanista minha e libertária de tudo, inclusive da mulher. Hoje, tenho mais clareza de que eu estava fazendo uma bandeira com minha arte.

O assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro, foi um episódio horrível. Você participou do protesto em Belo Horizonte e fez, a pedido do EM, uma homenagem com a Ellen Oléria para ela. Você se engajou na campanha dela?

Por incrível que pareça, não me engajei, porque estava muito comprometida com uma mulher que, embora não fosse negra, é uma pessoa maravilhosa, a Nilcéia Freire, que esteve muito doente e é uma grande lutadora. Na época, fui uma das que a incentivaram a se candidatar. Então, me senti responsável.
Gosto muito da Marielle. Depois que ela se elegeu, ficamos muito amigas. É como se eu tivesse votado nela. Era minha vereadora: negra, antiopressões contra LGBTs, uma pessoa que tinha um olhar incrível sobre a segurança do Rio de Janeiro. Foi uma perda imensa. O que seus algozes não esperavam é que ela fosse uma árvore sementeira e que sua morte levantasse muito mais gente do que os 50 mil que a elegeram.

Como você vê o combate ao racismo? Você considera que avançamos no Brasil?

A coisa mais nítida de nosso avanço está nas políticas de inclusão. As políticas de cotas foram definitivas. Você vê um monte de preto nas universidades, fazendo pós-graduação. Isso é definitivo. Não temos mais a mesma sociedade brasileira. Quando chega um preto na universidade, numa plataforma de produção de pensamento, ele mexe nessa produção tão branca que a gente recebe. A nossa produção intelectual é branca. Quando falo branca, digo do olhar da casa-grande: frágil, que não vê. É uma visão analfabeta da realidade. Mas nem todo branco é racista. No caso do racismo brasileiro, chegamos num ponto gravíssimo, o ponto do furúnculo estourado. Cada branco tem que chegar no restaurante onde só tem branco e perceber que tem algo de errado aí. Tem que chegar numa festa com sua babá vestida de uniforme branco e ficar constrangido por ter levado uma escrava para uma festinha de aniversário. Tem que entender que se, nas sete gerações da família dele, ninguém se casa com preto é porque está tendo uma educação racista.

Você teve uma situação financeira boa e frequentou lugares que não eram frequentados por pessoas negras. A sua percepção racial já estava presente todo o tempo?

Meu pai tinha essa clareza. Criou todos os filhos. Todos formados, todos pós-graduados. São cinco filhos: um engenheiro, um médico, uma psiquiatra, um procurador e eu, que sou formada em jornalismo e teatro. Meu pai criou a gente com esta clareza: “A chave é a educação, filha. Pela palavra todas as portas vão se abrir para você”. O domínio da nossa língua era fundamental: todos nós, lá em casa, escrevemos e falamos com facilidade. Nós temos domínio da nossa língua. Agora, pensa nos excluídos. Não falo do excluído que se organizou na favela, na periferia e foi para o centro comunitário agitar. Não, falo do excluído que não levanta a cabeça, que acha que está certo receber aquele quarto sem janela. Essa gente não tem acesso à palavra. Tenho feito provocação: você é um abolicionista moderno ou um escravocrata moderno?.

Em palestra no Sesc Palladium, com Eliana Dias e a consulesa da França, você contava de uma homenagem que recebeu de uma entidade israelita, que você conta que seu pai tinha vivido situação semelhante.

Fui ser homenageada como Mulher que faz a diferença. Estava com um vestidinho qualquer. Tinha ido à papelaria, minha secretária me ligou e disse que era o dia da entrega do prêmio. Eu disse: “Caramba, não me lembrava. A que horas é?”. “Daqui a 10 minutos.” Tive que ir com vestidinho rastaquera. Era uma coisa chiquérrima, todas as judias com seus cofres pendurados nas orelhas e pescoços, braceletes. Pensei: “Agora vão achar que sou empregada mesmo”. Fui ao banheiro dar um toque. Passei uma sombra dourada. Mas estava simplesinha. De dentro do lugar que tem a privada, abre a porta e uma mulher grita para mim: “Ainda bem que você está ai. Não tem papel higiênico. Fala com a sua chefe lá”. Falei assim: “Sim, senhora”. Cheguei para a mulher da limpeza, pedi papel higiênico e levei. A mulher continuou falando: “Que desorganização. Vocês não sabiam que ia ter o evento?”. Eu fiz isso porque anos antes meu pai, quando foi empossado presidente do Rotary Club, em Vitória (ES), numa festa num clube, tinha vivido algo semelhante. Só tinha branco. Meu pai estava de linho branco, lindo! Uma mulher convidada pela cerimônia disse: “Ei, garçom, traz a entrada para mim”. Ele foi na cozinha e pediu a entrada para ela: “Estou com as amigas e gostaria de fazer uma brincadeira com elas”. Ele me disse: “Minha filha, eu já sabia o final da história”. O final da história é que ele seria o rei da festa, ele seria empossado.

Com tanta intolerância e polarização, a linguagem artística é a melhor arma?

A arte é a nossa bandeira mais transformadora. Vide o (desfile da) Paraíso da Tuiuti, quando Temer mandou tirar a faixa já era tarde demais. O mundo já tinha visto. Bethânia pega um texto de Fernando Pessoa de 1912 e bota na rede, todo mundo acha que foi feito ontem. Se alguém brigar, ela diz: “Estou falando de Fernando Pessoa, 1912, tem nada a ver com você não, presidente doido, nada a ver com você não, ministro maluco”. A política está rindo da gente. O país está um caos e quem decide as trocas são grupelhos de partidos. Não é a política que é ruim. Essa forma de política é que está ruim. Está cada vez mais gritante que não dá para ter um país sem representatividade. Chega de menino mimado que não quer dividir o brinquedo. São eles que estão no poder. Não quero país onde não se mate o filho da moça que mora na Savassi. Quero país que não mate nenhum filho. Não posso pensar “ainda bem que não é na Savassi”. É uma mãe que está perdendo um filho seja onde for. Minha arte é para esclarecer o meu tempo.

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