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Edição de 'Zut', de Djami Sezostre, combina poesia, imagem e áudio

Coletâneo reúne 30 anos de estrada do autor que reclama uma leitura crítica

Anelito de Oliveira
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A primeira coisa que nos ocorre diante de um livro de poemas é falar da ingratidão que caracteriza o ofício de poeta na sociedade contemporânea, no século 21, no Brasil etc. Ao tocar neste assunto, caímos numa armadilha que há muito se tornou quase que inerente à recepção de livros de poemas: o acionamento de uma percepção condescendente com livros desse gênero. Todos os livros de poemas seriam excelentes porque ninguém dá valor à poesia hoje, porque resultariam de um esforço homérico dos poetas. A questão muito básica, que deve suscitar a resistência à queda nessa armadilha, é que a ingratidão vivenciada pelos poetas, o descaso pela poesia, não é de hoje, da modernidade, da pós-modernidade, é de sempre. Poetas que se respeitam, que não se movem em função de vaidades pequenas, não devem esperar “flores” de ninguém – se vierem, ok.

Não convém falar, então, apenas dos aspectos positivos do novo livro de Wilmar Silva sob pseudônimo de Djami Sezostre, publicado no final de 2016 pela belorizontina Editora Crivo, que traz o título aparentemente enigmático de Zut. São muitos os aspectos positivos, dignos de elogio, a começar pelo fato de se tratar de mais uma coletânea de um autor que estreou em 1986, que está na estrada pedregosa há mais de 30 anos, portanto. Mas os aspectos negativos, problemáticos, também são muitos, como em tudo que se faz na vida, e precisam ser notados até mais para que o leitor interessado possa ter uma imagem, tanto quanto possível, crítica do livro e do seu autor.

O apontamento de aspectos negativos também é importante para que o autor tenha uma imagem crítica do seu próprio processo, perceba-se a partir da perspectiva de um olhar outro crítico, não-viciado, naturalmente, nos mesmos movimentos cognitivos do autor. O primeiro grande aspecto negativo de Zut, capaz de estimular reações estéticas e ideológicas catastróficas tanto em relação à obra quanto ao autor, é o seu vanguardismo temporão, dir-se-ia, sua intenção de “causar”, como se costuma dizer entre os “cults” nos dias de hoje. Wilmar Silva, diluindo o próprio sentido da utilização de um pseudônimo, aparece nu em imagens estetizadas na capa e em inúmeras páginas do livro, ensaio fotográfico creditado a Ivan Domingues.


A negatividade desse aspecto não decorre exatamente da nudez, mas do que esse procedimento de “entrar” no livro acaba por significar à medida que destoa do “tonus” estruturante da obra, que é “verbivocal”, não visual propriamente dito. As imagens soam apelativas, e, deste modo, investidas de gratuidade narcísica, à medida que têm a ver apenas com o projeto gráfico, correspondem a um desejo de embelezamento do livro
. Como se sabe, os teóricos da poesia concreta brasileira – Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos – propuseram, nos anos 1950, uma poesia “verbivocovisual”, que fosse simultaneamente um constructo verbal, vocal e visual. Coube a Augusto de Campos realizar esse ideal já em meados dos anos 1990, com o avanço das novas tecnologias de edição e impressão, em trabalhos como “Bomba”, poemas que se fazem com a palavra, com o som e com a imagem visual.

O livro Zut apresenta essas dimensões não apenas separadas, mas lida com um conceito de imagem decorativa, que ilustra a obra de modo artificial, não contribuindo em nada para a dinâmica de sentido dos poemas escritos. Somente em relação ao CD áudio, que acompanha o trabalho, pode-se falar numa exploração realmente produtiva da relação entre verbal e vocal, que fica sugerida também de modo bastante rudimentar no âmbito do papel. Outro grande aspecto negativo desdobra-se do arranjo do objeto livro, se é que este, como estamos habituados há várias décadas, deve ser compreendido tal como se apresenta, como coisa artística, não apenas como suporte de outra coisa, de poesia, no caso. Zut está arranjado de um modo que, a pretexto de ostentar uma dessacralização da ideia tradicional de livro de poesia, acaba por afirmar uma espetacularização do objeto livro.

 Neste ponto, sua desejada transgressão estética, radicalizada em clave erótico-pornográfica, acaba por exibir uma complexidade ideológica responsável, sim, pelo descaso, desvalorização, “desemprego”, para lembrar o jovem crítico Affonso Romano de Sant´Anna, do poeta na sociedade contemporânea. A espetacularização das imagens de um autor – Wilmar Silva – que, a priori, não teria nada a ver com o livro – assinado por Djami Sezostre – desvia o interesse da poesia que, na realidade, é o que mais importa em Zut e merece leitura atenta. Em linhas gerais, trata-se de uma das escritas mais conturbadas no âmbito da produção poética brasileira atual, de fins dos anos 1990 para cá, digamos, quando, com a coletânea Pardal de rapina, aparecida em 1999, Wilmar Silva atingiu o que se pode considerar sua feição mais autêntica, seu próprio rosto.

Uma espécie de crise de autoria tornou-se, gradativamente, referência declarada dessa conturbação, com o poeta assinando seus livros sob pseudônimo ou com sobrenome novo: seu título de 2007, Estilhaços no lago de púrpura, é assinado por Joaquim Palmeira, procedimento que volta agora em Zut com Djami Sezostre; já o título aparecido em 2013, Eu te amo, é assinado por Wilmar Silva de Andrade. Procedimento passível de ser visto como irrelevância pretensiosa – mais um imitando Fernando Pessoa –, o pseudônimo Djami Sezostre constitui chave para interpretação medular da dinâmica de sentido de Zut à medida que se trata de apropriação, na verdade, do nome do pai de Wilmar Silva.

O pseudônimo, neste caso, deixa de atender ao intuito comum de esconder um nome verdadeiro de autor para dar lugar a um outro nome verdadeiro de não-autor, configurando-se um deslocamento engenhoso que permite ao poeta uma agudização do seu processo criativo em termos de enfrentamento de matéria há muito visada por ele: o mundo rural da sua infância, sua Rio Paranaíba situada no Triângulo Mineiro
. Como produção textual de um não-autor Djami Sezostre, os poemas de Zut podem dar vazão a todo um modo rudimentar, grosso, de perceber e expressar que nem por isso chega a ser natural, próprio de um homem natural, que viveu e morreu sem ter tido sua essência corrompida, adulterada, pelo processo civilizatório. A estetização, o artificialismo renitente, salta às nossas vistas como uma espécie de referência de fronteira entre dois mundos, o natural e o artificial: o do não-autor Djami Sezostre, forçosamente levado à condição de autor, e o do autor Wilmar Silva.

O traço inicial dessa estetização, do interesse prioritário pela produção de beleza, está no título apenas aparentemente enigmático (Zut, que se pronuncia “zyt”, é interjeição francesa para expressar surpresa desagradável), pois que apropriado do “Michel et Christine” de Rimbaud, poema de 1882 (“Zut alors, si le soleil quitte ces bords!”, algo como “Merda, então o sol já deixa estas paragens!”). Esse traço, com a autoridade literária que lhe é conferida supostamente pela fonte, exacerba-se em poemas que, tanto no livro quanto no CD, tem sua gramaticalidade destruída, configurando-se como coisas passíveis apenas de serem apreciadas através dos olhos ou dos ouvidos, não exatamente entendidas. Exemplos: “...ohcatarakwy, istrongi/ oplunguis alongui, ohcatarakwy” (Oh cahtahdrahkwyh); “warataras wrataras wrataras/ wataras wtataras wranas” (Roubador). São experiências de “poesia biossonora”, como o autor as denomina na esteira da “poesia sonora” disseminada no Brasil pelo poeta e pesquisador Philadelpho de Menezes (1960/2000) em meados da década de 1990, procedimento cuja invenção em 1916, sob a forma de “poesia fonética”, é atribuída ao dadaísta alemão Hugo Ball.

Receber essas experiências em clave conservadora, intolerante, como atestado de anacronismo, procedimento de quem acha que está inventando a “roda” porque ignora o passado literário, não é tão produtivo quanto procurar compreender o que isso acarreta ao projeto poético de Wilmar Silva, que ele, como todo criador, não pode ter pretensão, tampouco obrigação, de explicar. Esse projeto consiste desde o início, quando da estréia com Águas selvagens (1986), em trazer à tona a natureza em estado bruto, sem as purificações inerentes ao processo civilizatório, sem os “melhoramentos” éticos, para lembrar Raymond Williams em Campo e cidade, característicos da perspectiva urbana.

O embaraço em que o poeta se revela metido neste seu 36º livro não é fundamentalmente diverso daquele que já se apresentava lá no seu primeiro livro: desejar que palavras sejam coisas, não apenas representação das coisas. Em razão desse desejo, da dissolução da distância entre o que se diz (a substância do discurso) e como se diz (a superfície do discurso), é que o poeta acaba por complicar o seu processo criativo ao longo dos anos até chegar à teia paradoxal que é Zut. Antes de chegar ao cerne dessa teia, é preciso notar que o embaraço perceptível na obra de Wilmar Silva não se deve tanto ao desejo de lidar com palavras como coisas, mas sim ao modo como esse desejo é operado, digamos.

O desejo em si distingue o poeta, como se sabe, segundo a argumentação de Sartre no seu Que é a literatura?: poetas lidam com palavras como coisas, enquanto prosadores lidam com palavras como signos, no sentido da lingüística, não da semiótica, ou seja: representações verbais de outras coisas. Na produção literária brasileira, João Cabral de Melo Neto é o exemplo mais acabado desse poeta que o filósofo francês tem em vista, produtor de uma poesia coisal, marcada por um princípio de materialidade. O poeta mineiro opera esse desejo de um modo subjetivante que frustra na concepção sua intenção de trazer a natureza bruta à tona, a “sua” natureza, com seu rio Paranaíba, cavalos, bois, pássaros, árvores, terra, céu, lavradores.

O esforço do poeta para apresentar essas coisas como poemas em si esbarra sempre numa espécie de impossibilidade de conter seu sentimento, de se colocar friamente diante da matéria com que lida, a natureza. Assim é que apenas aparentemente os poemas de Zut são coisas, “concretizantes”, e não representações de coisas, massa discursiva lógica, portadora de uma dada racionalidade, mesmo nos momentos mais estranhos, experimentais. O fato de serem representações de coisas, configurações similares a outras tantas na esfera do trabalho artístico, de serem constructos artificiais, não naturais, não é, evidentemente, o mais importante a se perceber em Zut, e na agrolírica, como a chamei certa vez, do poeta como um todo.

O mais importante é perceber o elo entre esse problema de ordem estética e uma espécie de “agon”, de conflito, humano que em Zut revela-se radicado na relação com os pais, solicitando, de certa forma, a aproximação entre criação artístico-literária e psicanálise. Não só o livro é assinado com o nome do pai do poeta, como toda uma seção traz o subtítulo de “O menino da sua mãe”, um arranjo editorial que tem seu viés familiar escancarado, mais ainda, pelas imagens do poeta nu, tudo nos levando à ideia de um desnudamento de sentido. A exuberância ostensiva, tanto no livro quanto no CD, o excesso de artifício, tende a obscurecer a percepção do luto e da melancolia, para lembrar o famigerado texto de Freud, que orientam toda a construção de Zut. Basta o poema “Eu te ódio” como exemplo claro dessa problemática: “e/ eu te odeio oh pai que morre/ oh vida que eu vi morrer oh/ coração de meu oh coração eh/ e/ eu te odeio oh mãe que vive/ oh morte que eu vi nascer oh/ coração de meu oh coração eh”.

O poeta procura obsessivamente expressar, ao longo de todo o livro, sua relação com os pais, enquanto referências originárias de sua existência, e o primeiro dado que consegue denunciar é a distância enorme entre o artista guiado por um senso esteticista – isto é, subordinado a ideais inventados pelo mundo artístico – e o vivente comum, os Djamis Sezostres. A mediação do processo criativo por senhas consagradas da poesia moderna é, desde o título já comentado, traço complicador de Zut, que o revela imbricado no acervo escrito do passado. Merece menção especial o poema “Cantochão do Brazil”, que recria em clave satírico-selvagem a “Canção do exílio” de Gonçalves Dias, revelando, para além da suposta brincadeira, uma referência real, fundante, da obra de Wilmar Silva, que é o romantismo.

Certamente, deriva dessa referência, de tudo que o romantismo contém de generosidade, de “ingenuidade”, o fato de o poeta não duvidar da compossibilidade entre esteticismo artístico-literário e vida autêntica, entre valores urbanos e valores rurais, entre “alta cultura” e “incultura”, entre o que caracteriza o mundo pós-moderno do filho poeta e o que caracteriza o mundo pré-moderno dos seus pais lavradores, enfim. A operação emotiva, ao sabor apenas do ideal, do desejo de expressar o mundo originário do poeta, o “seu” lugar geográfico, resulta na exposição da melancolia como índice de uma crise profunda do sujeito. A palavra do melancólico, como Julia Kristeva escreveu no seu Sol negro, é repetitiva, o que facilmente se percebe em Zut: “Ziguezague e/ o menino da sua mãe/ não sabre zanzar e zanza feito animal/ não sabre grunhir e grunhe feito animal/ não sabre andar e anda feito um cachorro” (Pequenique no corgo do cavalo).

Todavia, se a repetição constitui um dos recursos mais explorados pela lírica moderna, é preciso distinguir sintoma de melancolia de mero artifício esteticista em Zut, e, sem dúvida, é este último aspecto que se destaca como finalidade da repetição ali. Sobrepõe-se ao sujeito melancólico, um artista sedento de auto-afirmação com vistas ao reconhecimento, disposto a dizer mesmo não tendo o que dizer: “Não tenho palavras para escrever./ As mãos foram plantadas e também/ Plantados foram os braços e também/ Plantados foram os cabelos e também/ Plantados foram os pensamentos,” (Gardens selvagens). A referência a mãe aparece nesse poema somente no antepenúltimo verso (“O menino da sua mãe”) sugerindo, ato falho ou não, uma hierarquização discursiva intrigante, imagem precisa do problema poético considerável que é Zut.

Anelito de Oliveira é pós-doutor em Teoria Literária pela Unicamp, doutor em literatura brasileira pela USP e professor na Unimontes, autor, entre outros, do ensaio A aurora das dobras (2013), sobre Affonso Ávila, e da coletânea de poemas Mais que o fogo (2012).