Aos 100 anos, Lêda Gontijo tem obra revista na exposição 'Força estranha'

Em paralelo, artista oferece oficina gratuita de cerâmica: ''A prática vai ensinando a gente a trabalhar''

por Shirley Pacelli 06/03/2016 06:00
São 12 horas por dia trabalhando. Vinte e cinco netos e 24 bisnetos. Idade? 100 anos. Mas talvez o mais importante número seja o 18º São Francisco de Assis que está em processo de criação pelas mãos de Lêda Gontijo. Do alto do seu centenário e prestes a completar mais um aniversário no próximo dia 12, a artista plástica mineira não para. “O sucesso da minha saúde é o trabalho”, diz.


Em celebração aos seus 101 anos, Lêda ganha a exposição Força estranha, a partir da próxima quarta-feira, na galeria de arte do Minas Tênis Clube. Com curadoria de Paulo Rossi, serão exibidas 80 obras que fazem uma retrospectiva da carreira da artista.


Peças de argila, cerâmica, madeira e pedra estão entre as selecionadas. “Sou muito eclética. Não tenho estilo. Faço o que dá na cabeça. Quero fazer pássaro, faço pássaro. Quero figura humana, faço. (Ter) Obrigação é muito chato”, afirma dona Lêda.

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''Quero fazer pássaro, faço pássaro. Quero figura humana, faço. (Ter) Obrigação é muito chato'' (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)
A idade não lhe roubou a memória e apurou seu senso de humor. Mas também lhe deu o direito à sinceridade. “Já perdi as contas na minha vida de quantas exposições fiz. Quero ver se agora chega de fazer exposição, né? Trabalhar na hora que tem vontade, sem compromisso. O que cansa a gente é o tal do compromisso.”


A artista recebeu o Estado de Minas em sua casa, em Lagoa Santa, um terreno arborizado de 8 mil metros quadrados, a uma quadra do cartão-postal da cidade. Em meio a coqueiros e gramado verdinho, peças de pedra-sabão e concreto se espalham pela área. Tem sapo, tomate gigante e até uma obra em homenagem a um cão querido que já se foi.

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Nos bastidores da arte: Dona Lêda recebeu o Estado de Minas em seu ateliê, em Lagoa Santa (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)
Em sua sala, dona Lêda ostenta seu retrato inacabado feito por Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), de quem foi uma das primeiras alunas. É entre jabuticabeiras e uma mangueira que fica o Mi Ranchito, ateliê onde tudo se transforma pelas mãos de dona Lêda.


A escultora tem carinho e cuidado com suas obras. Para a exposição, vieram peças de São Paulo e do Rio de Janeiro. Algumas chegaram arranhadas ou quebradas e ela passou horas reparando-as. “Estou fazendo uma vistoria”, explicou. De todas as peças que criou, a artista destaca duas: as imagens de São Tomás de Aquino e São Agostinho que estão no Mausoléu dos Imortais, no Cemitério São João Batista (Rio de Janeiro). “Considero-as minhas obras-primas, porque levei um ano para fazer cada escultura.”

MEDALHA Foi com elas que dona Lêda se tornou a primeira mulher a ganhar a medalha Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 1964. Feitas em pedra-sabão, em tamanho natural, as obras ficarão de fora da exposição, devido à dificuldade de transporte. “Meu neto me telefonou rindo muito e falou: ‘Vovó, você vai ficar muito orgulhosa e vai rir demais da conta’. Falei: ‘o que houve meu filho?’. ‘Vim aqui para tirar uns retratos porque as esculturas são muito grandes e muito pesadas, não tem como transportar. O coveiro encontrou comigo para abrir a cripta e contou sua vida inteira’”, conta dona Lêda.

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Lêda foi primeira mulher a ganhar a medalha Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)
Apesar de ser referência por seu trabalho em cerâmica, Lêda Gontijo utiliza qualquer material em suas peças. A pedra-sabão e a madeira são seus preferidos. “Ultimamente, estou fazendo pouca coisa em pedra-sabão, porque está muito cara. Antigamente, eu comprava um bloco de pedra por R$ 40, R$ 50. Hoje; é R$ 5 mil, R$ 6 mil”, afirma.

 

Atualmente, ela vem utilizando concreto como matéria-prima. “Olha as minhas mãos, olha as unhas. Acaba tudo”, comenta. Ela desenvolveu uma técnica em que faz a infraestrutura de metal envolta com tela e preenchida com jornal ou isopor para não ficar pesada. “Tem que ser coisa resistente, senão quebra. Com uma colher de pedreiro faço a massa”, conta.


A artista afirma não seguir uma vertente artística. “Como o artista tem que sobreviver da arte, ele se sujeita a fazer o que a pessoa pede. Eu fazia o que queria, na hora em que queria”, afirma. Na opinião dela, essa condição acabou contribuindo para o desenvolvimento de sua criatividade. “Porque, às vezes, o artista é obrigado a fazer sempre a mesma coisa, o mesmo estilo.”


São Francisco é o santo de sua devoção. “Gosto muito. Ele protegia os pobres e os animais”, explica. Católica praticante, ela se lembra de uma conversa com um frei sobre a mudança de comportamento das famílias cristãs. O religioso observou que, antigamente, todas as casas estavam repletas de imagens sacras. “Hoje, mudou completamente. Tem as (casas) decoradoras e não tem uma imagem de santo”, diz ela. A conversa com o frei foi incentivo para a escultora fazer uma coleção especial de arte sacra, exibida no Rio de Janeiro. “Lembro-me do Carlos Lacerda (1914-1977) comprando uma obra”, diz, referindo-se ao político brasileiro.

 

"Sou uma ET, mas uma ET bonitinha"

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Pupila de Guignard, Lêda Gontijo estudou pintura antes da escultura, a pedido do mestre (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)
Lêda Gontijo nasceu em 12 de março de 1915 em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira. A artista conta que ainda pequena fazia esculturas com miolo de pão no café da manhã. “Sou autodidata. Desde criança, tudo que pegava transformava em objetos diversos: brinquedo, pássaro, carrinho. Fui desenvolvendo essa aptidão que Deus me deu”, diz.


Em 1944, ela foi uma das primeiras alunas da escola de arte de Guignard, junto com suas irmãs, Lisete Meimberg e Maria Luiza Falci. “Entrei para aprender escultura. Era meu sonho. Não tinha, nessa época, professora de escultura”, conta. A pedido de Guignard, ela estudou pintura durante dois anos. “Ele gostava muito de mim. Achava-me muito talentosa.”


A escultora foi uma das primeiras artistas de BH e oferecerá uma oficina, paralelamente à exposição. “Imagina há quantos anos trabalho com cerâmica. A argila estraga e quebra. A prática vai ensinando a gente a trabalhar”, diz. A exposição, que estava prevista para 2015, foi adiada porque dona Lêda sofreu alguns acidentes.

 

Um tombo escada abaixo deixou-a com o nariz e três costelas quebradas. “Uma semana depois, já tinha me recuperado”, diz. Em outro acidente, no Rio de Janeiro, quebrou a perna. Meses depois, na Bahia, outro tombo. “Mas já estou boa outra vez. Descobriram que não sou deste mundo. Sou ET. Mas ET é tão feio! Sou uma ET bonitinha”, brinca.


Ainda com um pouco de dificuldade para andar, devido a um tombo mais recente, dona Lêda passeia com a “Mariquinha”, uma cadeira de rodas elétrica que ela pilota como se fosse um carro possante. A escultora dirigiu até os 90 anos e costumava pegar o carro sozinha para viajar para Guarapari (ES), onde tinha uma casa. Acabou perdendo a carteira por excesso de velocidade. “Pregava para os meus netos não fazerem isso. Os diabinhos descobriram e caíram na minha pele”, diz, com uma gargalhada.

 

OFICINA ATELIÊ VIVO - ESCULTURA EM CERÂMICA
Nos dias 10, 15, 17, 22, 29 e 31 de março e 5, 7, 12 e 14 de abril (terças e quintas-feiras). Serão oferecidas 50 vagas (cinco para cada dia de oficina). Das 14h30 às 17h. Inscrições gratuitas pelo telefone (31) 3516-1023. 

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