Companhia de Trisha Brown apresenta dois espetáculos no FID

Trabalho da coreógrafa americana está na base de importantes transformações na dança contemporânea

por Marcello Castilho Avellar 29/10/2010 11:10
Jacques Demarthon/AFP - Julieta Cervantes/Divulgação
(foto: Jacques Demarthon/AFP - Julieta Cervantes/Divulgação)

Entre os fundamentos da transição do mundo medieval para o mundo moderno esteve um olhar que buscava a autonomia das coisas. Os filósofos do fim da Idade Média, Renascimento e Iluminismo tentavam desvendar o que seria específico a cada objeto ou categoria de objetos, e a ciência, em suas origens, foi consequência desse olhar. Bom exemplo dele é a maneira como foi construída a ideia de “corpo humano”. Na medicina ou na dança, o corpo tradicional era unidade autônoma, com todas as suas possibilidades e vícios contidos dentro dele. Se alguém adoece, é porque alguma coisa penetrou o corpo ou algo se desarranjou dentro dele; se alguém dança, é porque as partes de seu corpo funcionam de certas maneiras umas em relação às outras. Chega a ser impressionante o tanto que demoramos para perceber que doenças não surgem apenas por causas internas – o estilo de vida, a qualidade do ambiente, o nível de tensão nas relações sociais constroem tanto um corpo quanto sua genética e os agentes biológicos ou químicos. Mais ou menos na mesma época em que a medicina ocidental alopática começou a perceber isso, também a dança começava a rever seus conceitos. O trabalho de uma das pioneiras daquela revisão pode ser conhecido ao vivo pelos belo-horizontinos a partir de sábado, quando o Fórum Internacional de Dança (FID) apresenta espetáculos da Trisha Brown Dance Company.

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A americana Trisha Brown completa 74 anos daqui a algumas semanas. Não dança mais – o que é uma pena, porque não apenas criava movimentos completamente inesperados, também os executava como ninguém. Felizmente, continua coreografando, com a mesma inquietude com que criava quando jovem (sua companhia está completando 40 anos). O que Belo Horizonte vai assistir, contudo, não é sua criação recente. Dentro do espírito da versão 2010 do FID, que tem como eixo curatorial a ideia de “Por uma museologia do corpo que dança”, os espetáculos que serão apresentados, Repertory works e Early works, são coletâneas em que predominam criações realizadas num momento em que as ideias e a estética da artista ainda não haviam se tornado patrimônio difuso em toda a dança contemporânea.

Dentro do mesmo espírito do FID, contudo, é possível perceber que não se trata simplesmente da apresentação de um repertório consolidado. Repertory works reúne trabalhos criados entre 1979 e 1996, apresentando, em certo sentido, duas décadas de desenvolvimento do pensamento de Trisha Brown. Early works realiza arqueologia mais profunda: revê criações do fim dos anos 60 e início dos 70. Nos dois casos, contudo, o objetivo da inserção da obra de Trisha Brown no FID não é apresentar algo que a história consagrou, mas investigar as transformações desses “clássicos” da contemporaneidade nos corpos dos novos bailarinos da companhia e nos novos olhares, que tanto artistas quanto espectadores construíram nesses 40 anos.

Investigação

Trisha Brown e sua companhia vêm conduzindo em diversas frentes a investigação sobre aquele corpo que não é unidade autônoma, mas elemento numa ampla rede de relações com o mundo ao redor. É corpo que se relaciona com o ambiente físico, geográfico, material – o olhar antigo, de clássicos ou modernos, acreditava que um espetáculo de dança fosse o mesmo em qualquer ambiente, enquanto a nova postura propõe que o sistema completo é corpo/movimento/espaço, ou seja, mesmo que bailarinos, passos e gestos sejam os mesmos, a inserção da coreografia em novo espaço produz um novo sistema, quase uma nova obra.

É corpo que se relaciona com outras linguagens que não as da dança (ou as que a tradição considera como dança). A própria Trisha Brown frequentemente se diverte contando como, nos anos 70, frequentemente as pessoas diziam que a criação dela não era dança, ou, pelo menos, não parecia dança. A coreógrafa é uma das mães da performance, da ideia de multimedia, do flerte com técnicas corporais que geralmente não associamos a um específico coreográfico. É corpo que se recusa a ser orientado apenas pelas lógicas do próprio corpo – evolui em paralelo com as inovações no pensamento e as transformações na sociedade. E, com tudo isso, torna-se corpo apto a transformar até mesmo relações já conhecidas, subvertendo dentro do palco e dentro de nossa ideia tradicional de dança sintaxes que julgávamos naturais, lógicas, necessárias.

Tudo isso está dado à contemporaneidade. Trisha Brown é tão importante que influencia até mesmo a criação de gente que não se identifica objetivamente com ela. Cada vez que um diretor de teatro constrói um espetáculo fora dos palcos convencionais, soluciona a partir de conquistas dela os problemas que lá encontra. Sempre que um bailarino decide usar movimentos do cotidiano ou se apropria de movimentos “não coreográficos”, como os dos esportes ou das artes marciais, presta tributo à coreógrafa americana. No FID 2010, encontramos diversos artistas e companhias que receberam, conscientemente ou não, esta influência. Fora do FID, vamos achá-la em artistas aparentemente distantes uns dos outros, de Rodrigo Pederneiras a Débora Colker. A Trisha Brown Dance Company, em certo sentido, é um novo mundo para a arte, com a maior parte de seu território ainda inexplorado.

TRISHA BROWN DANCE COMPANY

Repertory works – Sábado, às 21h, e domingo, às 19h30, no Teatro Sesiminas (Rua Padre Marinho, 60, Santa Efigênia, (31) 3241-7181), com ingressos a R$ 2 (inteira) e R$ 1 (meia). Early works – Segunda-feira, às 16h, na Praça da Liberdade, com entrada franca.

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