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ARTES CÊNICAS

Atriz branca investiga engrenagens do racismo a partir da própria família

- Foto: Acervo pessoal Yara de Novaes

“Um jogo de desmemória” é o que propõe a atriz e diretora mineira radicada em São Paulo Yara de Novaes em seu novo espetáculo, concebido para ser visto pelo público via computador e com a possibilidade de participação na narrativa.



(Des)memória, que estreia neste domingo (10/1), parte de uma história familiar de Yara de Novaes, mas diz muito sobre a construção social do Brasil. A atriz atua com seu nome real no papel de uma mulher nascida em Belo Horizonte que tenta reencontrar seu passado familiar a partir de uma foto de sua bisavó, Leopoldina Rosa de Souza Novaes, que era negra, mas sobre quem ela tem poucas referências. 

Enquanto assiste, o espectador é convidado a clicar e fazer escolhas de determinadas opções para seguir a história. É preciso, por exemplo, aceitar uma ligação clicando em um celular que aparece na tela. Ao fazer isso, outra personagem aparece. A atriz Fafá Rennó, que interpreta uma irmã de Yara, surge como se estivesse em uma videochamada. Uma estética bem comum nos meses de pandemia. 

Desse modo vai se dando a investigação de Yara sobre sua bisavó. O percurso inclui cenas gravadas em casa por ela e pelo restante do elenco, como também imagens da cidade de Mariana, onde Leopoldina viveu. Essa viagem ocorre via recursos digitais, como o Google Maps e o Google Street View. 



As instruções de como interagir com a história aparecem na tela e é necessária uma boa dose de atenção para não se perder. O objetivo é precisamente esse. “Num espaço de teatro convencional, normalmente o espectador fica ali, na plateia, durante todo o tempo, para que aquela apresentação aconteça. Nós (artistas) precisamos da presença do público ali o tempo inteiro. Uma presença viva, interessada, voluntária. O que tentamos com esse jogo é ter isso também”, afirma Yara de Novaes. Ela entende que propostas digitais mais passivas podem abrir espaço para distrações do espectador que se encontra no ambiente doméstico. 

“O que percebi, como espectadora, é que em muitas apresentações virtuais a gente acaba saindo, indo beber uma água. Infelizmente, acontece. Por isso criamos essa proposta na qual é preciso o clique para que haja continuidade. É preciso que quem assiste seja parceiro, que estejamos juntos. Por isso, falo repetidas vezes ‘você ainda está aqui?’.” A depender das escolhas do espectador, a peça pode durar de cinco a 40 minutos.


Na opinião da atriz e diretora, a pandemia aguçou os aspectos mais inventivos da atividade teatral, pela necessidade de improvisar novas formas de expressão. “O teatro tem essa característica de experimentar. É a forma pela qual nosso processo de criação busca a linguagem ideal, sempre. Quando entramos em temporada,  apresentamos um espetáculo 50 vezes e cada uma é uma nova experiência. Temos esse ciclo de renovação, aprendemos a morrer e reviver todo dia, faz parte da nossa atividade”, afirma.



No caso de (Des)memória, os recursos tecnológicos usados pelo desenvolvedor de games Italo Travenzoli ajudam a conectar a narrativa a um passado que desapareceu. Ou melhor, que “foi roubado”, como a protagonista diz em cena. 

FOTO

A partir dessa foto, que vai sendo montada na tela como um quebra-cabeças, e de conversas com sua irmã e com seu filho Pedro (Alexandre Cioletti), além de imagens de Mariana, ela conta ao público por que as referências sobre uma ancestral negra desapareceram da memória da família em uma sociedade mineira tradicional. 

Yara revela que a inspiração para a peça, que teve dramaturgia de Vinícius de Souza, veio em um debate sobre a obra Baiana, de autoria desconhecida, pertencente ao acervo do Museu do Ipiranga, em São Paulo. A tela traz uma mulher negra em trajes de sinhá. “Isso me deu um insight. Lembrei-me de que tinha uma foto assim da minha bisavó”, diz a atriz belo-horizontina, que decidiu pesquisar mais sobre a antepassada, conversando com parentes e acessando documentos e estudos sobre a sociedade da época.  

“Resolvi fazer esse game para encontrar minhas negras e reconhecer esse apagamento feito delas na família. O que tinha sobre Leopoldina eram adjetivos que a desqualificam, como ‘sovina’, ‘metida’, comentários preconceituosos, coisas que a sociedade branca falava de uma negra que conseguiu criar filhos e se inserir neste mundo branco”, conta. 



O resultado, diz Yara, é que “essa recuperação me devolveu uma história pessoal e me aproximou de pessoas e acontecimentos que as famílias normalmente apagavam. Compreendi tudo isso que suscitou o embranquecimento que minha família sofreu”. Ela encara esse recorte pessoal como “uma representação da história brasileira completamente corrompida, assassinada e apagada”. 

Em Mariana, a trama também vai digitalmente até Bento Rodrigues e contextualiza o rompimento da Barragem da Samarco, há cinco anos, em que a maior parte das vítimas era negra. “No diálogo com meu filho, falamos desse racismo ambiental, visto em Bento Rodrigues. Normalmente, quando tragédias assim acontecem, os mais afetados são os negros e pobres, que moram em lugares de risco”, afirma Yara.

(Des)memória será lançado no Teatro EmMov Digital, criado pelo antes itinerante Teatro em Movimento no contexto da pandemia.

(Des)memória 
Deste domingo (10/1) a 8 de fevereiro, na plataforma Teatro EmMov Digital. Acessível apenas via computadores. Gratuito.