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Comédia de Jorge Furtado sobre censura tem leitura dramática em BH

A atriz Fernanda Montenegro - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A.Press
Em 1967, Fernanda Montenegro estava em cartaz no Rio de Janeiro com a peça Volta ao lar, do dramaturgo britânico Harold Pinter (1930-2008). O texto havia sido traduzido por Millôr Fernandes, a montagem tinha direção e produção de Fernando Torres, e contava com Zbigniew Ziembinski, Sergio Britto e Paulo Padilha no elenco.


 
A história gira em torno do primogênito de uma família inglesa, que, depois de anos estudando nos Estados Unidos, volta para casa para apresentar a mulher e os filhos à família, composta somente por homens.

No começo de 1968, depois de uma temporada de sucesso nos palcos cariocas, a montagem se preparava para estrear em São Paulo. No entanto, foi censurada. Em março daquele mesmo ano o estudante Edson Luís foi assassinado por policias militares no Restaurante Calabouço, no Rio. Em dezembro, o então presidente Artur da Costa e Silva decretou o Ato Institucional Número Cinco (AI-5), que recrudesceu o regime, resultando, entre outras medidas, na perda de mandatos de parlamentares contrários aos militares, em intervenções ordenadas pelo presidente nos municípios e estados, na suspensão das garantias constitucionais e no uso da tortura pelo Estado como instrumento de combate à resistência à ditadura.

Fernanda e Fernando tentaram a todo custo argumentar com os censores. Tiveram reuniões com uma das figuras mais temidas da época, Solange Hernandes, a Dona Solange, que foi chefe da Divisão de Censura de Diversões Públicas e decidia o que podia e o que não podia ser exibido no teatro, no cinema e na televisão.



Durante os intervalos da filmagem de um longa, Fernanda Montenegro contou essa história ao diretor gaúcho Jorge Furtado (Houve uma vez dois verões, Meu tio matou um cara). “A tradução do Millôr trazia muitos palavrões. Era uma dramaturgia forte, eloquente, e eles ficavam negociando. Esse palavrão acho que não é adequado. Esse é inapropriado; esse pode entrar, porque é mais leve. É surreal e quase tragicômico”, diz Furtado, que decidiu escrever uma peça inspirada nesse episódio.

Com o interesse do diretor, a atriz então lhe narrou com detalhes como foi. “Os atores e o próprio Fernando Torres, diretor e produtor, discutindo com um censor da polícia qual tipo de palavra você vai utilizar numa peça de teatro, um espaço fechado, com limite de idade. A tendência da censura é ficar cada vez mais burra”, afirma. Depois de muita negociação, a peça foi liberada e estreou sem cortes, para ser encenada para maiores de 21 anos.

Assim nasceu Meus lábios se mexem, que terá uma leitura dramática aberta ao público nesta segunda-feira (27), em Belo Horizonte, no Teatro da Cidade. A direção é de Adyr Assumpção, que também fará um dos personagens. Cida Falabella, Ângela Mourão, Antônio Grassi, Eduardo Moreira e Bernardo Mata Machado participam do projeto. “O texto do Furtado me chamou a atenção de cara, porque tem aquele toque do humor, que é uma marca dele, a delicadeza também e levando a gente à reflexão. A trama mostra justamente como foi essa negociação entre o elenco, a produção e os censores. É bem interessante”, comenta Adyr.


Furtado, que criou a história em 2018, diz que, já naquela época, a censura começava a dar as caras novamente. Em 2017, a exposição Queermuseu - Cartografias da diferença na arte brasileira, que estava em cartaz havia quase um mês no Santander Cultural, em Porto Alegre, foi cancelada pelo banco, após uma série de protestos nas redes sociais. Na visão dos manifestantes, a mostra fazia apologia à pedofilia e à zoofilia, além de ser ofensiva à moral cristã.

No mesmo ano, a peça O evangelho segundo Jesus, Rainha do céu, em que uma atriz trans interpretava Jesus Cristo, sua apresentação no Festival de Inverno de Garanhuns, em Pernambuco, e em outras cidades brasileiras, proibida.
 
“Quando eu fiz a peça, ainda estávamos no governo Temer, mas já estava havendo essa questão do reacionarismo, do preconceito e dessa coisa tacanha crescendo cada vez mais. Todo dia tinha uma notícia de alguma coisa sendo censurada. E agora culminou com esse momento de alucinação do ex-secretário da Cultura, Roberto Alvim (o diretor teatral foi exonerado do cargo no último dia 17, depois de gravar um vídeo no qual emulada o ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels para anunciar um edital de incentivo às artes no Brasil).



Meus lábios se mexem já teve leitura dramática em Porto Alegre e no Rio, onde contou com a presença de Fernanda Montenegro na plateia. Ela se emocionou com o que viu. “Quis o destino que você pegasse essa brincadeira na distância do tempo e fizesse uma peça linda. E numa hora em que este país deveria tomar um rumo, para nos dar uma saída. É tão misteriosa a vida e a relação humana. Eu quero te agradecer em nome do Fernando (Torres), do Sérgio (Britto), do Ziembinski, do (Paulo) Padilha. Já estão todos mortos. Nesse momento em que você trouxe para minha filha (Fernanda Torres, que acompanhava a mãe na sessão) essa coisa especial”, declarou Fernandona no encontro.

Furtado diz que seu objetivo ao escrever o texto era voltar a um momento dramático da história brasileira. “É algo que aconteceu há 50 anos. E está se tornando presente, de certa maneira. A história e cíclica. Se a gente não aprender com ela, ela volta.”

Adyr Assumpção, que tomou contato com a peça por intermédio da cineasta Ana Luiza Azevedo, sócia de Furtado na Casa de Cinema de Porto Alegre, conta que pretendia ter encenado o texto ainda em 2018, para marcar um ano da criação da Frente Nacional Contra Censura. O movimento foi lançado em novembro de 2017, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, com o objetivo de lutar contra atos contrários à liberdade de expressão.



Mas só agora eles conseguiram conciliar a agenda de todos os envolvidos e acharam que seria apropriado esse momento em que a cena teatral da cidade está aquecida com a agenda da Campanha de Popularização do Teatro e Dança e a edição 2020 do Verão Arte Contemporânea (VAC).

“Desde a criação desse texto do Jorge Furtado, a coisa, infelizmente, só foi recrudescendo. O teatro sempre foi a vanguarda, no sentido de luta pela liberdade e democracia. Ele sempre teve esse protagonismo dentro das artes. A gente andava meio 'calmo', apesar de tanta pancada, mas é hora de dar uma guinada. Esse texto está superbem escrito, com um acabamento dramatúrgico bem interessante e traz para o momento uma discussão relevante, reporta a um momento histórico que a gente achou que estaria superado. Daí sua importância”, afirma.

Jorge Furtado também lamenta os últimos acontecimentos envolvendo a área cultural no país e cita uma frase de Caetano Veloso na audiência de que o cantor e compositor artista baiano participou, em novembro passado, ao lado de outros representantes da classe artística, no Supremo Tribunal Federal, para discutir medidas contra eventuais tentativas de censura por parte do governo federal.


 
“A censura é algo terrível. O Caetano declarou, na ocasião, algo que achei certíssimo. O direito à informação não é um direto do artista de se expressar, mas o direito da população de ter acesso a uma cultural plural, diversa e democrática. Eu tenho o direito de dizer, ver, ler e ouvir o que eu quiser. E não vai ser um bando de imbecis que vai determinar isso.”

Em relação à possibilidade de Regina Duarte substituir Roberto Alvim no comando da Cultura na esfera federal, Furtado diz não torcer contra, porque, se der errado, todos sofrem. Mas pondera: “A expectativa não é das melhores. Mas independentemente de quem entrar, o responsável pela Cultura no governo vai continuar sendo o presidente da República. É ele que manda, no fim das contas, na política cultural. Para mim, nada de bom relacionado à cultura pode vir desse governo. Espero que eu esteja errado, mas acho que não. Mas, enfim, a cultura nunca morreu e nunca morrerá. Somos resistentes”. Furtado acaba de finalizar as gravações da série do Globoplay Todas as mulheres do mundo, inspirada na obra do diretor e dramaturgo Domingos Oliveira (1936-2019).

Meus lábios se mexem
Leitura dramática do texto de Jorge Furtado. Direção: Adyr Asssumpção. Com Cida Falabella, Ângela Mourão, Antônio Grassi, Eduardo Moreira, Bernardo Mata Machado. 
Nesta segunda (27), às 20h, no Teatro da Cidade (Rua da Bahia, 1.341, Centro. (31) 3273-1050. Entrada franca