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Estado de Minas

Conheça a bailarina Regina Advento, estrela da companhia alemã Pina Bausch

'O mundo está maluco de novo', adverte bailarina que abriu caminhos para os negros no Grupo Corpo


30/09/2018 08:00 - atualizado 17/10/2018 10:25

Regina Advento ensaia com a Companhia de Dança do Palácio das Artes, em 2011
Regina Advento ensaia com a Companhia de Dança do Palácio das Artes, em 2011
A bailarina, coreógrafa e cantora Regina Advento, de 53 anos, é um dos principais nomes do grupo criado por Pina Bausch (1940-2009), ícone da dança contemporânea. Radicada há 22 anos na Europa, a mineira está entre as estrelas mais premiadas da companhia alemã. Atualmente, mora com o marido e a filha na cidade de Wuppertal. O Grupo Corpo foi o diferencial na vida de Regina, a grande escola. Nascida no Aglomerado da Serra, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, ela começou a dançar ainda criança para aplacar a impulsividade. Além de se dedicar aos ensaios, estudou filosofia e cursa mestrado em cultura da dança na Universidade de Esporte 
de Colônia.

Você foi a primeira bailarina negra do Grupo Corpo, abrindo portas para muitos outros. Como foi o seu despertar para a dança?
O despertar foi por meio da terapia. Fui uma criança muito agressiva. Dançar fez parte do tratamento psicológico, quando tinha 9 anos. No início, não gostava de balé de jeito nenhum. Gostava de brincar com os meninos, jogar futebol, subir em árvore. Com 14, participei do festival da Escola do Corpo e não parei mais. Quando terminei o ensino médio, pensei em fazer fisioterapia e educação física. Mas fiz uma audição, pensei que dançava um pouquinho. Só fiz faculdade depois dos 50 anos. Faço mestrado em cultura da dança na Universidade de Esporte de Colônia. E terminei o curso de cinco anos de dançaterapia.

A bailarina em Pina, filme de Wim Wenders
A bailarina em Pina, filme de Wim Wenders
Como foi a sua infância?
Nasci na Serra. Foi uma infância muito bonita, experiência importante na minha vida. Fui muito privilegiada por ter vivido em dois mundos diferentes. Meus pais vieram no interior e morávamos no morro, na favela. A comunidade era bem diferente, tinha benzendeira. Andava pela cidade sozinha e fazia minhas descobertas. Em nosso quintal, tinha uma árvore muito grande, eu subia nela. À noite, de lá, via toda a cidade iluminada. Tenho lembrança especial daquela época, que influenciou muito a minha vida, o que eu quero e não quero. Hoje, a infraestrutura chegou ao morro, mas a vida é mais difícil.

O que você destacaria em sua trajetória no Grupo Corpo? 
Tudo o que vivenciei lá foi muito importante. Tive base muito boa, inclusive técnica. Não era bailarina clássica, mas tinha destaque pela energia, salto, qualidade de giro, por ser muito rápida e dinâmica. Minha qualidade era a superatividade. Canalizei o excesso e a impulsividade para a dança. Missa do orfanato foi uma peça que marcou minha vida, estava numa boa fase. Melhor tecnicamente. O Grupo Corpo era um ambiente familiar muito importante. Tinha e ainda tenho relação muito íntima com Rodrigo, com Paulo e toda a família Pederneiras. Eles tiveram muita paciência comigo. No início, não gostava muito da dança. O Grupo Corpo me deu base muito boa, as condições técnicas que tenho hoje em dia. Mesmo depois dos 50 anos, ainda danço coisas.

Você foi para Wuppertal devido à audição de que participou no Rio de Janeiro. Sua família não teria condições de bancar a viagem para a Alemanha. A dança mudou sua vida?
Completamente, desde o início. A dança mudou meu comportamento. Equilibrou-me. Pude canalizar a agressividade. Usei o excesso de impulsividade na dança, fiquei mais feminina. O Grupo Corpo me deu estabilidade financeira. Saí do Corpo, fiz a audição no Rio de Janeiro para a Pina Bausch e já viajei com contrato. Meus pais não poderiam me bancar na Europa. Quando vim, estava muito em forma, jovem. Estava muito boa tecnicamente. Se quisesse procurar outro trabalho aqui na Europa, poderia ficar. Gostei do que estava fazendo.

Você está na companhia de Pina Bausch há 25 anos. Como é ter uma carreira internacional? Como é a sua rotina?
Minha rotina mudou muito. Entrei para a Pina em 1993. Eram oito horas de trabalho, das 10h às 14h e das 18h às 22h. Hoje em dia, ensaio. Temos um ensaio longo, das 10h às 18h, com uma hora de pausa. Nunca fiz análise de minha carreira internacional. As coisas aconteceram naturalmente. No momento, estou feliz quando fico parada e não há tantas viagens. Minha filha Jasmim vai completar 19 anos. Ela nasceu em 1999 e foi superdifícil. Viajávamos pelo mundo inteiro, até ela entrar na escola. Os pais do meu marido se mudaram para cá. Tive muita ajuda da família, dos pais do meu marido. É uma vida interessante, com muitas viagens que permitem conhecer outras culturas. Foi um período muito enriquecedor, mas turbulento. Para viajar com filho, você tem que ter muita organização, a vida é muito estressada. Mesmo assim, comecei a fazer meus projetos: grupo de música, concertos, coreografias. Ficou ainda mais turbulento combinar tudo com a companhia. Agora quero diminuir o ritmo, e isso está acontecendo naturalmente. Desde que Pina Bausch morreu, em 2009, não fizemos nenhuma produção. Estou na companhia e ainda estudando. Às vezes, faço show.

Numa de suas entrevistas, você citou diferenças entre bailarinos brasileiros e alemães. Depois de duas décadas na Alemanha, você mantém o jeito de dançar brasileiro? Ou já incorporou o jeito alemão?
Falo da diferença da técnica. Também tem a diferença cultural, de como lidar com corpo. O brasileiro é mais aberto, o alemão é mais contido. Tem a diferença no jeito de andar. O brasileiro move mais a cintura. O alemão é mais apertadinho, não tem jogo de cintura, falta um pouco de suingue. A gente tem técnica mais aberta, mais dramática. Na dança alemã, você deve ter outro tipo de peso no corpo. A técnica chama o contato com a terra – mais pesada, mais pra baixo. Consigo variar entre as duas. Posso usar as duas quando quero, dependendo da necessidade. Mas Pina queria que usasse o meu estilo brasileiro. Ela usou a leveza, a sensualidade, a forma do meu corpo, que é muito brasileiro. Usava as duas qualidades, a leveza, giro, saltos e pernas. Quando entrei na companhia, as bailarinas não saltavam. Pina pedia para que usasse a perna, os saltos e giros. Usei a vida inteira. A minha forma de dançar mudou um pouco. Incorporei esse peso.
Regina Advento com Rodrigo Silva em A criação, espetáculo do Corpo que estreou em 1990
Regina Advento com Rodrigo Silva em A criação, espetáculo do Corpo que estreou em 1990

Você sofreu discriminação tanto no Brasil quanto na Alemanha. Sua história é muito inspiradora para as meninas negras. O que você diria para elas?
O mundo está maluco de novo. Tudo está ficando tão estranho, com discriminação geral, religiosa, aos refugiados. Tem discriminação com os turcos. Sempre digo: por ser negra, você já é diferente. A gente tem uma missão de vida muito especial. Se voltar em outra encarnação, quero voltar negra. É vida de trabalho, de desafio. Quando você consegue superar, vencer todos os obstáculos, é uma sensação muito boa. É tipo uma missão. A vida é mais difícil. Você, sendo negro, nasce com dificuldade só por ter essa cor. Sempre tem que provar alguma coisa. Percebo isso viajando. Quando entro numa loja, tem gente pra me controlar. Penso assim: podem colar em mim. Enfim, são as pequenas coisinhas no dia a dia. As pessoas tendem a desconfiar mais. Não é uma coisa pesada, mas um atributo diferente. E você tem que aprender a lidar com ele para não se deixar perder naquele ambiente à sua volta. Tento separar as coisas. O problema não é meu, o problema é daquela pessoa. Não me acho diferente. As pessoas é que acham isso.


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