Pela terceira vez em um ano e sete meses, desde o início de seu mandato, o prefeito do Rio, Marcelo Crivella (PRB), está sendo acusado de censurar uma manifestação artística calcada na diversidade sexual e que seria abrigada por um equipamento cultural municipal. O motivo: o prefeito, bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, a considerou ofensiva aos cristãos.
O alvo dessa vez foi o espetáculo teatral O Evangelho Segundo Jesus, rainha do Céu, que traz uma travesti representando Jesus Cristo e já foi cancelada em outras cidades por conta de ações de movimentos conservadores. A peça seria encenada essa semana na Arena Fernando Torres, no Parque Madureira, zona norte do Rio.
Leia Mais
Justiça libera peça com Jesus Cristo transexualPeça com atriz transexual no papel de Jesus Cristo chega a BH Barrada em São Paulo, peça com trans no papel de Jesus é liberada em Porto Alegre Musical infantil O palhaço e a bailarina tem apresentação única em BHPeças de teatro são apresentadas em contêiners no projeto 'La movida in box'"O espetáculo ofende a consciência dos cristãos. Essa arena está fechada. E na minha administração, nenhum espetáculo, nenhuma exposição vai ofender a religião das pessoas. Eu não vou permitir. Enquanto eu for prefeito, vamos respeitar a consciência e a religião das pessoas", diz Crivella no vídeo.
Em outubro do ano passado, o prefeito vetou pessoalmente a exposição Queermuseu - Cartografias da diferença na arte brasileira, programada para o Museu de Arte do Rio (MAR); na ocasião, ele disse que ecoava a rejeição do povo do Rio ao conteúdo da mostra, que sequer a havia visto, e a tachou de imoral, dizendo que as obras pregavam a "zoofilia" e a "pedofilia". No mesmo mês, foi cancelada a peça Bicha Oca, no Castelinho do Flamengo, outro equipamento municipal - neste caso, a prefeitura alegou uma pane elétrica.
Nesta terça-feira (5), foi realizado um ato pela liberdade de expressão e contra o cancelamento do Evangelho na Praça do Leão Etíope, na zona norte do Rio. A produção da mostra Corpos Visíveis, na qual o espetáculo se insere, informou que o espetáculo estava acordado com a arena para acontecer nos dias 8, 9 e 10.
Só na segunda-feira chegou a posição final da Secretaria de Cultura de que a programação estava de fato cancelada, segundo a produtora Sophia Prado. "É uma atitude transfóbica do prefeito. Como ele diz que não vai permitir esse tipo de evento na cidade, e a secretaria vem justificar que é um problema jurídico?", criticou Sophia.
A peça já foi cancelada em Jundiaí e em Salvador pela Justiça, provocada por movimentados conservadores. "O vídeo deixa muito clara a intenção do prefeito, que não conhece o espetáculo e já o qualifica como ofensa. Nas outras cidades, foi uma censura vinda de grupos políticos e religiosos. Agora, o poder público diretamente, o que é bastante assustador", lamentou a diretora da peça, Natalia Mallo.
"A gente já estava apreensivo, por saber que esta gestão é movida pelo fundamentalismo religioso, contrário à diversidade e aos direitos das pessoas LGBTQ. Mas essa censura escancarada, o preconceito tão explícito, não. Poderia haver algum decoro", continuou.
"Esta intervenção direta do prefeito não é uma prática comum ou mesmo aceitável, visto que se trata de um estado laico", diz a nota da mostra "Corpos Visíveis". "Trata-se nitidamente de censura à visibilização e livre expressão artística dos corpos LGBTQI%2b, femininos, negros e periféricos. A peça já sofreu tentativas de censura em outros estados e aqui mesmo no município com perseguições sofridas por trazer uma atriz travesti no papel de Jesus e um roteiro que questiona "E se Jesus vivesse nos tempos de hoje e fosse travesti?". A produção da Corpos Visíveis garante que a peça não busca ofender cristãos, mas cria um questionamento sobre a falta de tolerância e respeito nos tempos atuais pregando o respeito e o amor incondicional."
A Secretaria Municipal de Cultura divulgou nota informando que não houve cancelamento da Corpos Visíveis, e explicando que por força de um mandado de segurança a arena está com todas as atividades suspensas há cerca de um mês. O mandado foi impetrado pelo antigo gestor do espaço. "Por causa desta decisão judicial, toda a programação está suspensa, e não apenas a mostra Corpos Visíveis", diz o texto oficial. A reportagem questionou a secretaria sobre o vídeo e a ingerência do prefeito, e a resposta foi que a pasta não comenta declarações dele.